cenário
Ano
1966
Margem esquerda do Rio Jacuípe³,
São Gonçalo dos Campos – BA
Então, Enam⁴ tinha 9 anos,
vovó Shaira¹, 51 e vovô Rashidi⁶, 58.
Com notas explicativas, ao
final,
para enriquecer a contação.
A pergunta do netinho, afligia vovó
Shaira¹. O azul dos olhos de Enam ⁴,
era assunto que ela não gostava de lembrar.
Uma casinha simples, pau a pique, teto de palha trançada, quase uma tapera, próxima à margem do rio, tempos antes das águas do Paraguaçu² e do Jacuípe³ serem represadas – a barragem de Pedra do Cavalo.
O rio Jacuípe³, então,
corria em um profundo vale. Lá embaixo, dava para atravessar aquele curso
d’água - gente e boiadas - sem maior dificuldade. Havia uma barquinha,
para quem não quisesse molhar os pés.
Mas, vamos por partes.
- Enam⁴, já te disse
e repito, teus olhinhos são azuis por vontade de Oxalá, contornava a
avó. Perguntes a teu avô, acho que ele pode dar outra explicação, completava.
A avó não gostava de recordar o que acontecera com Ayana ⁵.
Ayana ⁵, a mãe de Enam⁴, era cozinheira
em uma fazenda distante - criação de gado e plantação de fumo, situada na
localidade de Mercês, a caminho da capital. Ela pouco vinha visitar a família.
Quanto ao pai do garoto, um ‘gringo’ de olhos azuis, comprador de fumo, sumira
no mundo, após breve romance com Ayana⁵ - história à parte.
O marido de vovó Shaira¹,
vovô Rashidi⁶, garantia o
sustento da família, dedicando-se à pesca e ao plantio de amendoim, mandioca,
algumas verduras, diversas frutas. Criava, também, dois ou três porquinhos, uma
vaquinha leiteira e um mundaréu de galinhas.
Ainda não tinham luz
elétrica. O candeeiro a querosene iluminava as noites. Água para beber e
cozinhar, tiravam do rio, de manhã, bem cedinho, sendo coada em pano de algodão
para dentro de uma talha de barro. Esta ficava meio ao corredorzinho da casa “para
a água ser sempre fresquinha”, costumava dizer vovó Shaira¹. De barro eram
diversos utensílios - pratos, tigelas, copos, alguidares. Uma ou outra lata de
banha de porco ou de querosene Jacaré, vazia, conseguida em uma das raras idas
ao centro da cidade, serviam de panelas, acomodadas na chapa de um velho fogão
a lenha. Além de colheres de pau, um facão afiado, um ou duas facas de aço. Não
havia outros talheres. Comia-se com as mãos.
Enam⁴, ainda não
frequentava a escola, mas vovô Rashid⁶ - na infância apadrinhado por um
abastado comerciante – completara o curso primário, cuidava para que o menino
não ficasse analfabeto. Sua mãe prometera ir buscá-lo; iria morar com ela em
Mercês, onde havia uma escola, mas ainda não aparecera.
Estavam ao almoço, peixe
frito era a comida do dia, quando o neto tagarela, olhos voltados para além do
rio, indagou:
- Vovô Rashidi⁶, o que é Umburanas⁷? Os meninos
que moram do lado de lá, sempre falam nesse nome.
- Meu filho, corrigiu o
velho, não fale com a boca cheia e ainda mais quando está comendo peixe.
Cuidado com as espinhas! Vamos terminar de comer essa moqueca de tucunaré,
tirar uma soneca e, depois, vovô explica tudinho, combinado? Ah! E não abuse da
pimenta!
Mais tarde, sentados a
improvisado banco - o tronco de uma jaqueira -, à frente da casinha, avô e neto,
apreciavam o despencar do sol. Galinhas e pintinhos ciscavam ao redor.
- Meu neto, iniciou o
velho, você sabia que bem pertinho daqui, ali em frente, muitos moradores
eram índios, que viviam nas margens do rio Paraguaçu²?
Enam⁴ arregalou os
‘zóios de gude’ e, um tanto assustado, retrucou: Índio, vovô? Tem perigo, não?
- Não, meu querido, isso é
coisa do passado. Os índios eram os tupis, da tribo conhecida por Payayas. Eram
eles quem chamavam de Umburanas ⁷, as terras ali na frente.
E prosseguiu.
- Aquela região passou a
nos pertencer em 1884⁸, quando São Gonçalo - até então
pertencente a Cachoeira -, foi reconhecido como um novo município baiano. Na
ocasião, como muitos criadores de gado daqui, mantinham seus animais em pastos
do lado de lá, Umburanas⁷ foi incorporada na área de nosso
município.
A esta altura, Enam⁴ interrompe ao avô - E por qual razão não é mais nossa?
- Boa pergunta, meu neto. Umburanas⁷, que depois,
mudou de nome para Tinguatiba⁹ pertenceu a São Gonçalo por 78
anos. Em 1962¹⁰ separou-se de
nós, pois seus habitantes decidiram formar um município com o nome de Antônio
Cardoso¹¹.
- Santo Antônio Cardoso¹¹?
- rápido, perguntou o neto.
- Que negócio de Santo
Antônio Cardoso¹¹? Que é isso menino? - zangou o velho.
- Eu pensei que se é
santo do lado de cá, também podia ser santo do lado de lá! - disse Enam⁴.
Vovô Rashidi⁶, fechou
demoradamente as pálpebras e foi buscar, no fundo de suas vivências, uma
‘justificativa’ para responder ao neto.
Filosofou:
- Meu querido, mais uns
anos e você vai entender os homens. Há muitos anos, tudo se baseava na religião
dos portugueses, a católica. Daí choviam santos por todos os cantos. Até nosso
país tem sua consagração à mãe de Deus, representada pela negra Nossa Senhora
Aparecida. Com o passar do tempo, as crenças vêm sendo esquecidas. No lugar
delas, prevalecem valores que não estão ligados à religião, seja qual for. Você
entende isso?
- Acho que sim, vovô! E o
senhor, por acaso, sabe quem foi Antônio Cardoso¹¹?
O velho, cansado com tantas
perguntas, saiu-se prometendo: ‘S’incomode’ não, Enam⁴! Vovô, hora
dessas te explica tudo, tim-tim por tim-tim. Por ora, posso te adiantar que se
tratava do maior proprietário rural daquelas bandas.
Nem bem tinha terminado de
conversarem, vovó Shaira¹, lá de dentro da cozinha, conclama: Enam⁴, deixe de
conversa fiada e venha me ajudar a catar feijão!
O avô, de pronto, orientou
o garoto.
- Vá logo meu neto, você
conhece sua avó. Não é branca, mas é franca!
O guri, sem entender, não
perdeu a oportunidade para indagar: Vovô, depois o senhor me conta esse
negócio de não é branca, mas é franca? – O velho, assentiu com a cabeça.
Curioso ao extremo, ao
chegar à cozinha, questiona a velha: Vovó! Feijão tem piolho?
- ‘Ó xente, bichim’! ‘Cê’
endoidou? Onde já se viu piolho no feijão?
- Ver, nunca vi, vovó! Mas
a senhora me chamou pra catar. Catar que eu sei, é catar piolho, de vez em
quando, na cabeça da gente!
A velha, acostumada a tais
situações, valeu-se da paciência acumulada ao longo da vida, explicando ao
garoto.
- Meu neto, o feijão
depois de seco vem da roça com muitos pedacinhos de casca das vagens, muitos
grãos de areia, coisas assim, que precisam ser tiradas, antes de colocar na
água pra amaciar. Mas, ‘cê’ tem razão, é parecido como se a gente fosse mesmo
catar piolho. E prosseguiu.
- Senta aí, logo, - vamos
começar a catação que, como ‘cê’ vai ver nada mais é que a limpeza dos grãos do
feijão, entendido?
Enam⁴, língua coçando como sempre, sugeriu.
- Chame o vovô pra ajudar a
gente.
- Melhor não, meu querido.
Ele não enxerga bem e deixa sujeira passar.
O velho ouvira a conversa e como detestava
catar feijão, aproveitou o momento para arrematar.
- É isso mesmo, meu neto!
Vovô Rashidi⁶ enxerga muito
mal, assim é bom que você ajude sua vó. – e,
em sequência, dirigindo-se à mulher.
-
Minha velha, prepare aquele café que só você sabe fazer, junte o aipim
cozido e o bolo de puba, para nosso jantar. Separe, também um lanche para mim,
pois nesta noite vou pescar. – e, agora, se dirigindo ao neto.
- Quanto a você, Enam⁴, já sabe, né?
Depois da janta, escovar os dentes, vestir o pijama, pedir a bênção à sua
protetora Iansã. Lembre-se, você nasceu no dia dela, em dezembro. Hora dessas,
continuaremos nossa prosa. Agora, vamos jantar logo. Anastácio já deve estar me
esperando lá na beira do rio; nós vamos pescar daqui a pouco. E completou. - Não sei se Ulisses também vai aparecer...
Logo interrompido por Enam⁴.
-
Quem é esse ‘seu’ Ulisses? Eu conheço ele?
-
Conhece sim, é que você não lembra. Ele é o pai de Fuica, e tem, sempre, uns
dichotes¹² divertidos.
-
Ainda não sei o que é esse tal de dichote. Todo caso, diga um, vovô; prometo
que hoje não vou perguntar mais ‘nadica de nada’.
-
Então, anote: “Quem tem dinheiro, vê Deus primeiro”.
1.
Shaira¹:
nome de
origem suaíli; significa ‘poetiza’.
2.
Paraguaçu²: na língua
tupi = ‘para’ + ‘guaçu’ = rio + grande. É o principal rio 100% baiano; estende-se por 614 quilômetros; homenagem à índia
Catarina Paraguaçu², casada com o náufrago português Diogo Álvares Correia (Caramuru) tido por pai biológico do Brasil.
Nasce na região diamantífera e ruma à Baía de Todos os Santos. No Brasil
colonial, também foi escrito de muitas outras formas: Paraguassu, Paraoçu,
Paraossu, Peroguraçu, Perasu, Peoassu e Peruassu.
3.
Jacuípe³:
na língua
tupi = “no rio dos jacus”; ‘jacu’ (uma ave) + ‘y’ (rio) + ‘pe’ (no). Nasce em
Morro do Chapéu, Chapada Diamantina, a 1.011 metros de altitude; estende-se por
437 quilômetros; é afluente do rio Paraguaçu².
4. Enam ⁴: nome de origem ganesa; significa ‘presente de Deus’
5. Ayana ⁵: nome de origem etíope; significa ‘bela flor’, ‘flor de beleza ímpar.
6. Rashidi ⁶: nome de origem suaíli; significa ‘o pensador’ ou ‘o conselheiro’.
7. Umburanas ⁷: na língua tupi = ‘i’ + ‘iba’ + ‘rana’ = água + árvore + semelhante. Árvore nativa do sertão nordestino. Altura: 6 a 12 metros. Outras denominações: Amburana-de-cheiro, cerejeira, cumari-do-ceará, imburana-de-cheiro. Nome botânico: Amburana cearensis.
8. 1884 ⁸ – 28, julho: Emancipação política de São Gonçalo dos Campos, desmembrando-se de Cachoeira, com demarcação de sua área territorial inicial.
9.
Tinguatiba
⁹: na
língua tupi = ‘tingua’+ ‘iba’ = pontiagudo + árvore, tronco. Não localizamos
nome botânico específico ou registro algum quanto à similaridade com a denominação
‘tinguaciba’, outro arbusto nativo
do Brasil com casca espinhosa, cor alaranjada, folhas também espinhentas,
flores em cachos,. Os frutos são pequenas nozes. Nome botânico: Zanthoxylum Tingoassuiba.
10. 1962¹⁰ – 18, abril: Data quando o então governador da Bahia, Juracy Magalhães assinou a Lei 1682, criando o município Antônio Cardoso¹¹, com um só distrito, denominado Tinguatiba ⁹, correspondente à antiga Umburanas ⁷. Permaneceu, todavia, sob jurisdição de São Gonçalo dos Campos até abril 1963, quando lá, foi realizada a primeira eleição municipal.
11. Antônio Cardoso¹¹ de Souza (1848-1932) – Nascido na antiga freguesia de Nossa Senhora do Resgate das Umburanas ⁷, proprietário de extensas propriedades locais, foi coronel de grande poder econômico e político. Sua influência e legado atravessaram gerações. Seu neto homônimo foi o primeiro prefeito do município e seu bisneto, o terceiro.
12.
Dichotes¹²:
o mesmo
que gracejos, indiretas, chufas, remoques.
· Pesquisas na internet
Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual
Bahia
– Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,
participa
do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos
Campos.
[email protected]
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