domingo, 23 de março de 2025

 


‘Zóios de gude’

                                                                                                              cenário

Ano 1966

Margem esquerda do Rio Jacuípe³,

São Gonçalo dos Campos – BA

 Então, Enam tinha 9 anos,

vovó Shaira¹, 51 e vovô Rashidi, 58. 

Com notas explicativas, ao final,

para enriquecer a contação.

                      - Vovó, por que meus amiguinhos me chamam de ‘Zóios de gude? ” Tem alguma coisa a ver com aquelas bolinhas de vidro que a gente joga?

         A pergunta do netinho, afligia vovó Shaira¹. O azul dos olhos de Enam , era assunto que ela não gostava de lembrar.

                     Uma casinha simples, pau a pique, teto de palha trançada, quase uma tapera, próxima à margem do rio, tempos antes das águas do Paraguaçu² e do Jacuípe³ serem represadas – a barragem de Pedra do Cavalo.

                     O rio Jacuípe³, então, corria em um profundo vale. Lá embaixo, dava para atravessar aquele curso d’água -  gente e boiadas -  sem maior dificuldade. Havia uma barquinha, para quem não quisesse molhar os pés.

                     Mas, vamos por partes.

                     - Enam, já te disse e repito, teus olhinhos são azuis por vontade de Oxalá, contornava a avó. Perguntes a teu avô, acho que ele pode dar outra explicação, completava. A avó não gostava de recordar o que acontecera com Ayana ⁵.

                     Ayana ⁵, a mãe de Enam⁴, era cozinheira em uma fazenda distante - criação de gado e plantação de fumo, situada na localidade de Mercês, a caminho da capital. Ela pouco vinha visitar a família. Quanto ao pai do garoto, um ‘gringo’ de olhos azuis, comprador de fumo, sumira no mundo, após breve romance com Ayana⁵ - história à parte.

                     O marido de vovó Shaira¹, vovô Rashidi⁶, garantia o sustento da família, dedicando-se à pesca e ao plantio de amendoim, mandioca, algumas verduras, diversas frutas. Criava, também, dois ou três porquinhos, uma vaquinha leiteira e um mundaréu de galinhas.

                     Ainda não tinham luz elétrica. O candeeiro a querosene iluminava as noites. Água para beber e cozinhar, tiravam do rio, de manhã, bem cedinho, sendo coada em pano de algodão para dentro de uma talha de barro. Esta ficava meio ao corredorzinho da casa “para a água ser sempre fresquinha”, costumava dizer vovó Shaira¹. De barro eram diversos utensílios - pratos, tigelas, copos, alguidares. Uma ou outra lata de banha de porco ou de querosene Jacaré, vazia, conseguida em uma das raras idas ao centro da cidade, serviam de panelas, acomodadas na chapa de um velho fogão a lenha. Além de colheres de pau, um facão afiado, um ou duas facas de aço. Não havia outros talheres. Comia-se com as mãos.

                     Enam⁴, ainda não frequentava a escola, mas vovô Rashid⁶ - na infância apadrinhado por um abastado comerciante – completara o curso primário, cuidava para que o menino não ficasse analfabeto. Sua mãe prometera ir buscá-lo; iria morar com ela em Mercês, onde havia uma escola, mas ainda não aparecera.

                     Estavam ao almoço, peixe frito era a comida do dia, quando o neto tagarela, olhos voltados para além do rio, indagou:

                     - Vovô Rashidi, o que é Umburanas? Os meninos que moram do lado de lá, sempre falam nesse nome.

                     - Meu filho, corrigiu o velho, não fale com a boca cheia e ainda mais quando está comendo peixe. Cuidado com as espinhas! Vamos terminar de comer essa moqueca de tucunaré, tirar uma soneca e, depois, vovô explica tudinho, combinado? Ah! E não abuse da pimenta!

                     Mais tarde, sentados a improvisado banco - o tronco de uma jaqueira -, à frente da casinha, avô e neto, apreciavam o despencar do sol. Galinhas e pintinhos ciscavam ao redor.

                     - Meu neto, iniciou o velho, você sabia que bem pertinho daqui, ali em frente, muitos moradores eram índios, que viviam nas margens do rio Paraguaçu²?

                     Enam⁴ arregalou os ‘zóios de gude’ e, um tanto assustado, retrucou:  Índio, vovô? Tem perigo, não?

                     - Não, meu querido, isso é coisa do passado. Os índios eram os tupis, da tribo conhecida por Payayas. Eram eles quem chamavam de Umburanas , as terras ali na frente.

                     E prosseguiu.

                     - Aquela região passou a nos pertencer em 1884, quando São Gonçalo - até então pertencente a Cachoeira -, foi reconhecido como um novo município baiano. Na ocasião, como muitos criadores de gado daqui, mantinham seus animais em pastos do lado de lá, Umburanas foi incorporada na área de nosso município.

                     A esta altura, Enam⁴ interrompe ao avô - E por qual razão não é mais nossa?

                     - Boa pergunta, meu neto. Umburanas, que depois, mudou de nome para Tinguatiba pertenceu a São Gonçalo por 78 anos. Em 1962¹ separou-se de nós, pois seus habitantes decidiram formar um município com o nome de Antônio Cardoso¹¹.

                     - Santo Antônio Cardoso¹¹? -  rápido, perguntou o neto.   

                     - Que negócio de Santo Antônio Cardoso¹¹? Que é isso menino? - zangou o velho. 

                     - Eu pensei que se é santo do lado de cá, também podia ser santo do lado de lá! - disse Enam⁴.

                     Vovô Rashidi⁶, fechou demoradamente as pálpebras e foi buscar, no fundo de suas vivências, uma ‘justificativa’ para responder ao neto.  Filosofou:

                     - Meu querido, mais uns anos e você vai entender os homens. Há muitos anos, tudo se baseava na religião dos portugueses, a católica. Daí choviam santos por todos os cantos. Até nosso país tem sua consagração à mãe de Deus, representada pela negra Nossa Senhora Aparecida. Com o passar do tempo, as crenças vêm sendo esquecidas. No lugar delas, prevalecem valores que não estão ligados à religião, seja qual for. Você entende isso?   

                     - Acho que sim, vovô! E o senhor, por acaso, sabe quem foi Antônio Cardoso¹¹?

                     O velho, cansado com tantas perguntas, saiu-se prometendo: ‘S’incomode’ não, Enam! Vovô, hora dessas te explica tudo, tim-tim por tim-tim. Por ora, posso te adiantar que se tratava do maior proprietário rural daquelas bandas.

                     Nem bem tinha terminado de conversarem, vovó Shaira¹, lá de dentro da cozinha, conclama: Enam, deixe de conversa fiada e venha me ajudar a catar feijão!  

                     O avô, de pronto, orientou o garoto.

                     - Vá logo meu neto, você conhece sua avó. Não é branca, mas é franca!

                     O guri, sem entender, não perdeu a oportunidade para indagar: Vovô, depois o senhor me conta esse negócio de não é branca, mas é franca? – O velho, assentiu com a cabeça.

                     Curioso ao extremo, ao chegar à cozinha, questiona a velha: Vovó! Feijão tem piolho?

                     - ‘Ó xente, bichim’! ‘Cê’ endoidou? Onde já se viu piolho no feijão?

                     - Ver, nunca vi, vovó! Mas a senhora me chamou pra catar. Catar que eu sei, é catar piolho, de vez em quando, na cabeça da gente!

                     A velha, acostumada a tais situações, valeu-se da paciência acumulada ao longo da vida, explicando ao garoto.

                     - Meu neto, o feijão depois de seco vem da roça com muitos pedacinhos de casca das vagens, muitos grãos de areia, coisas assim, que precisam ser tiradas, antes de colocar na água pra amaciar. Mas, ‘cê’ tem razão, é parecido como se a gente fosse mesmo catar piolho. E prosseguiu.

                     - Senta aí, logo, - vamos começar a catação que, como ‘cê’ vai ver nada mais é que a limpeza dos grãos do feijão, entendido?

                     Enam⁴, língua coçando como sempre, sugeriu.

                     - Chame o vovô pra ajudar a gente.

                     - Melhor não, meu querido. Ele não enxerga bem e deixa sujeira passar.

                      O velho ouvira a conversa e como detestava catar feijão, aproveitou o momento para arrematar.

                     - É isso mesmo, meu neto! Vovô Rashidi enxerga muito mal, assim é bom que você ajude sua vó. – e, em sequência, dirigindo-se à mulher.

                     - Minha velha, prepare aquele café que só você sabe fazer, junte o aipim cozido e o bolo de puba, para nosso jantar. Separe, também um lanche para mim, pois nesta noite vou pescar. – e, agora, se dirigindo ao neto.

                     - Quanto a você, Enam, já sabe, né? Depois da janta, escovar os dentes, vestir o pijama, pedir a bênção à sua protetora Iansã. Lembre-se, você nasceu no dia dela, em dezembro. Hora dessas, continuaremos nossa prosa. Agora, vamos jantar logo. Anastácio já deve estar me esperando lá na beira do rio; nós vamos pescar daqui a pouco. E completou. - Não sei se Ulisses também vai aparecer...

                     Logo interrompido por Enam⁴.

                     - Quem é esse ‘seu’ Ulisses? Eu conheço ele?

                     - Conhece sim, é que você não lembra. Ele é o pai de Fuica, e tem, sempre, uns dichotes¹² divertidos.

                     - Ainda não sei o que é esse tal de dichote. Todo caso, diga um, vovô; prometo que hoje não vou perguntar mais ‘nadica de nada’.

                     - Então, anote: “Quem tem dinheiro, vê Deus primeiro”.

 

 Notas explicativas 

1.       Shaira¹: nome de origem suaíli; significa ‘poetiza’. 

2.       Paraguaçu²: na língua tupi = ‘para’ + ‘guaçu’ = rio + grande. É o principal rio 100% baiano; estende-se por 614 quilômetros; homenagem à índia Catarina Paraguaçu², casada com o náufrago português Diogo Álvares Correia  (Caramuru) tido por pai biológico do Brasil. Nasce na região diamantífera e ruma à Baía de Todos os Santos. No Brasil colonial, também foi escrito de muitas outras formas: Paraguassu, Paraoçu, Paraossu, Peroguraçu, Perasu, Peoassu e Peruassu. 

3.       Jacuípe³: na língua tupi = “no rio dos jacus”; ‘jacu’ (uma ave) + ‘y’ (rio) + ‘pe’ (no). Nasce em Morro do Chapéu, Chapada Diamantina, a 1.011 metros de altitude; estende-se por 437 quilômetros; é afluente do rio Paraguaçu². 

4.      Enam ⁴: nome de origem ganesa; significa ‘presente de Deus’

5.      Ayana ⁵: nome de origem etíope; significa ‘bela flor’, ‘flor de beleza ímpar. 

6.      Rashidi ⁶: nome de origem suaíli; significa ‘o pensador’ ou ‘o conselheiro’. 

7.      Umburanas : na língua tupi = ‘i’ + ‘iba’ + ‘rana’ = água + árvore + semelhante. Árvore nativa do sertão nordestino. Altura: 6 a 12 metros. Outras denominações: Amburana-de-cheiro, cerejeira, cumari-do-ceará, imburana-de-cheiro.  Nome botânico: Amburana cearensis.

8.      1884 ⁸ – 28, julho: Emancipação política de São Gonçalo dos Campos, desmembrando-se de Cachoeira, com demarcação de sua área territorial inicial. 

9.       Tinguatiba ⁹: na língua tupi = ‘tingua’+ ‘iba’ = pontiagudo + árvore, tronco. Não localizamos nome botânico específico ou registro algum quanto à similaridade com a denominação ‘tinguaciba’, outro arbusto nativo do Brasil com casca espinhosa, cor alaranjada, folhas também espinhentas, flores em cachos,. Os frutos são pequenas nozes. Nome botânico: Zanthoxylum Tingoassuiba. 

10.    1962¹⁰ 18, abril: Data quando o então governador da Bahia, Juracy Magalhães assinou a Lei 1682, criando o município Antônio Cardoso¹¹, com um só distrito, denominado Tinguatiba ⁹, correspondente à antiga Umburanas . Permaneceu, todavia, sob jurisdição de São Gonçalo dos Campos até abril 1963, quando lá, foi realizada a primeira eleição municipal.                     

11.    Antônio Cardoso¹¹ de Souza (1848-1932) – Nascido na antiga freguesia de Nossa Senhora do Resgate das Umburanas ⁷, proprietário de extensas propriedades locais, foi coronel de grande poder econômico e político. Sua influência e legado atravessaram gerações. Seu neto homônimo foi o primeiro prefeito do município e seu bisneto, o terceiro.

12.    Dichotes¹²: o mesmo que gracejos, indiretas, chufas, remoques. 

· Pesquisas na internet

Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual

Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,

participa do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos.
[email protected]

http://livrodoscharutos.blogspot.com

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