Em agosto de 2018, começou
um mestrado em Ciências da Cirurgia, na área de pneumologia, na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Hoje, ele também atua como
auxiliar no programa de estágio docente de neurologia (aplica provas e
tira dúvidas dos alunos do 4º ano de Medicina) e é voluntário no
laboratório de reabilitação raquimedular no Hospital de Clínicas, ambos
dessa universidade.
Isso tudo não seria tão extraordinário se
Odair não sofresse de uma doença neuromuscular degenerativa progressiva
que lhe tirou praticamente todos os movimentos.
Foi ainda bebê que Odair foi diagnosticado como portador de
Atrofia Muscular Espinhal tipo II (AME2), doença similar e tão grave e
incapacitante quanto a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), de que
sofria o famoso físico britânico Stephen Hawking, morto em 2018.
A
principal diferença entre as duas é a época da vida em que se
manifestam (mais na cedo na AME2) e na velocidade de suas progressões
(mais rápida na ELA).
"Meus pais logo perceberam que eu não
engatinhava, só rolava", conta. "Eles suspeitaram que eu tivesse AME,
porque um primo mais velho meu sofre da mesmo mal. Então, o diagnóstico
foi rápido."
A doença
A
AME2 se caracteriza pela degeneração e perda de neurônios motores da
medula espinhal e do tronco cerebral. Os primeiros sintomas aparecem
entre os 6 e 18 meses de vida — o bebê apresenta dificuldade para
sentar, ficar de pé ou caminhar sozinho. Com o tempo, a doença leva a
fraqueza e atrofia muscular progressivas.
Os pacientes também
passam a apresentar hipotonia (redução ou perda do tônus muscular),
paralisia, arreflexia (falta de reflexos), amiotrofia (atrofia de tecido
muscular) e miofasciculação (contração muscular pequena e
involuntária).
Esses problemas afetam primeiro as pernas, depois os braços e, por último, os músculos do tronco.
De
maneira semelhante, a ELA é uma doença neurodegenerativa progressiva,
relativamente rara, que afeta ambos os neurônios motores, tanto
superiores quanto inferiores. Assim como a AME2, ela causa fraqueza e
atrofia muscular progressivas.
Quanto ao tônus muscular, no
entanto, ocorre o contrário — ou seja, um aumento, que leva a um sintoma
chamado espasticidade e que, por sua vez, origina um aumento
involuntário das contrações musculares.
"Outra diferença é que sua
progressão é extremamente rápida, evoluindo para paralisia, com um
tempo de sobrevivência de 1 a 5 anos após os sintomas iniciais", explica
Odair à reportagem da BBC News Brasil.
Infância e adolescência 'tranquilas'
Desde
muito cedo, ele sempre soube de sua doença e de suas limitações. Apesar
disso, viveu uma infância e uma adolescência que classifica como
"tranquilas".
"Eu tinha mais movimentos", explica. "Nunca tive
nenhum problema, sempre fui conhecido e popular na minha cidade. Eu
frequentava a escola e as festinhas na adolescência normalmente, e nunca
sofri bullying, nem nada disso."
Os problemas começaram a
surgir mais tarde, por volta de 2013, quando ele já estava na
faculdade. A partir de então, passou a não conseguir mais realizar
sozinho tarefas básicas e a situação piorou. Aos poucos, Odair foi
perdendo os movimentos.
"Sempre tive limitações motoras, mas elas pioraram com o tempo", conta.
"Inicialmente,
tinha dificuldade em atender ao telefone, depois não conseguia mais
mexer no celular. Em seguida, fui perdendo a capacidade de escrever,
jogar videogame, tomar água sozinho, de arrumar a mão no joystick da
minha cadeira de rodas motorizada e, por fim, de mastigar. Hoje, dependo
da minha mãe para tudo."
A capacidade de mastigar ele readquiriu
recentemente, graças ao medicamento Spinraza, único aprovado pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da
AME.
É uma medicação extremamente cara: a dose de 5 ml custa R$
300 mil. Para ter acesso a ele, Odair e sua família tiveram de entrar na
Justiça contra seu plano de saúde. São quatro doses iniciais, de quinze
em quinze dias; a primeira ele tomou em 12 de julho, e depois são três
por ano. "Já senti melhoras para comer", conta. "Antes só tomava sopas e
caldos ralos. Hoje consigo mastigar alimentos sólidos de novo."
Limitações e o interesse pela ciência
Tão ruins quanto as limitações físicas são as do convívio social, impostas pela doença.
"Depois que deixei de me virar sozinho, as pessoas começaram a se afastar", lamenta Odair.
"Não
tenho amigos, não encontro gente para sair. Parece que sou um estorvo.
Então, passei a ficar só em casa ou na universidade. Mas estou tentando
superar isso. Voltei esse mês a sair. Sozinho, mas saio — ainda estou do
mesmo jeito, sem movimento. Estou tentando me ressocializar. É muito
ruim passear sozinho. Mas é um pouco melhor do que ficar trancado no
quarto."
Por isso, Odair diz que está sempre em um processo de
adaptação. Seu interesse pela ciência veio disso. No início, ele não
queria ser pesquisador e tentou arrumar emprego em vários lugares do
Estado de São Paulo. Sem sucesso.
"Um diz fiz uma prova para
residência num centro de diagnóstico por imagem em Ribeirão Preto e
corrigi duas questões erradas, que o próprio gerente que fez a prova não
sabia que não estavam corretas", lembra.
"Não passei na prova e
depois meu pai falou que o rapaz havia conversado com ele e dito que eu
não tinha chance por causa das minhas limitações físicas. Fiquei
extremamente triste e revoltado."
Depois, quando ingressou na
Unesp — inicialmente no curso de Ciências Biológicas, no câmpus de
Jaboticabal, onde ficou um ano —, Odair teve uma depressão muito forte e
quis desistir várias vezes.
"Mas eu me dizia que se eu desistisse ia ficar mais louco ainda", recorda.
"Então,
me recuperei e por causa da minha mãe fiz tudo que sempre sonhei. Ela
me manteve em pé e confiante em que tudo ia dar certo. Por isso, disse
para mim mesmo: já que não consigo emprego, vou fazer o que eu faço de
melhor, que é estudar. Coloquei na minha cabeça que iria me tornar o
melhor pesquisador da minha área e ajudar aqueles que, como eu, são
competentes, mas a vida os subjuga e os coloca para baixo. Hoje, estou
na área de pneumologia, mas sou um ávido estudioso em neurologia, nas
sub-áreas neuromuscular e de lesões raquimedulares."
O mestrado
Como tudo em sua vida, ingressar no mestrado não foi fácil.
"No
início, passei por diversas dificuldades", conta. "A princípio, com
minhas diversas limitações, não me aceitavam, dizendo que eu não daria
conta do serviço. Insisti por quase um ano, até que os professores
Marcos Mello Moreira e Monica Corso Pereira, hoje meus orientadores, me
deram essa oportunidade, pela qual sou imensamente agradecido. Eu
preciso de ajuda para auscultar os pacientes e para fazer algumas
anotações, mas dou conta do trabalho."
Odair faz na Unicamp seu
mestrado em ciências da cirurgia, uma área que trata do conhecimento já
estabelecido e novas técnicas e procedimentos operatórios. Em suas
pesquisas na área de pneumologia, ele estuda a Doença Pulmonar
Obstrutiva Crônica (DPOC) — colheu dados tomográficos e outros testes de
60 pacientes, que serão analisados como parte de seus estudos.
Além disso, Odair auxilia duas alunas de Medicina da Unicamp no trabalho de conclusão de curso delas.
Sua
previsão é terminar o mestrado no primeiro semestre do ano que vem.
Depois, ele quer seguir para o doutorado, na mesma linha de pesquisa.
Apesar
dos percalços que enfrenta por causa da atrofia medular, Odair — filho
de um pai que trabalhou a vida toda em uma empresa de dedetização e hoje
está aposentado, e de uma mãe dona casa — diz que a maior dificuldade
para pessoas como ele é sempre dinheiro.
"Cadeira de rodas,
adaptações posturais, tecnologia assistiva (dispositivos que proveem
assistência para pessoas com deficiência), carro adaptado, todos esses
itens, necessários para uma vida mais digna para deficientes e
familiares, são extremamente caros", diz.
"Se o deficiente e a
família não forem paupérrimos, não recebem ajuda alguma dos órgãos
públicos. Tudo é caro para quem precisa. Eu ainda tenho sorte de
conseguir adquirir bens para facilitar minha vida, como cadeira de rodas
motorizada e carro adaptado, que minha mãe dirige."
Ele diz que já viu e vê cadeirantes em carrinhos de bebê e carrinhos de mercado, além de cegos sem acompanhantes.
"É cada absurdo que dá raiva e vergonha de ser brasileiro", reclama.
"Isso
tudo é o que eu vejo trabalhando nos hospitais públicos e também sendo
atendido. Às vezes eu me canso, mas me faz bem trabalhar no hospital.
Poder ajudar um paciente, conversar, mostrar que você realmente se
importa com aquela pessoa, é muito bom. Quando um cadeirante vê você
ali, fazendo o que gosta, acho que eles sentem um pouquinho de
esperança. Que nem tudo é impossível. É difícil? Com certeza. Temos que
ter coragem e confiança em nós mesmos."
Por isso, ele diz que espera que um dia todos possam ter uma vida digna.
"Que
um cadeirante tenha uma cadeira adaptada; um cego, um acompanhante e
livros em braile; um amputado, uma prótese; um surdo-mudo, pessoas que
saibam libras; o que precisarem, enfim, para viver melhor", deseja
Odair.
"Sempre que troco de cadeira, doo a anterior. Isso é
insignificante se pensarmos na quantidade de pessoas que precisam, mas
para nós é importante a ajuda mútua. Se eu tenho uma cadeira sobrando,
dou a quem precisa; se eu preciso de sonda urinária e outra pessoa tem
sobrando, ela me dá. Essa é a ideia que quero passar. Até termos
condições melhores nas políticas assistenciais. No meu caso, me
considero afortunado. Tanto pela minha família quanto pelas
oportunidades que tenho." (BBC News Brasil)
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