quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Vetinflix, a paródia cearense de ‘La Casa de Papel’, alça jovens da periferia a ídolos de Fortaleza

Polegar em riste, cabelo na régua, sobrancelha riscada, bigode fininho. Um jeito de andar com uma malemolência própria, bermuda estilo surfista e chinela nos pés. Uma linguagem recheada de gírias que podem soar pouco compreensíveis nas aforas da periferia de Fortaleza. “Vai ser sal”, dizem ao se referir a algo que vai dar muito certo, que vai ser incrível. A expressão pode servir para uma entrevista marcada num conjunto habitacional “que nem CEP tem”, uma batalha de passinho ou para uma festa em tempos normais que abrace do brega-funk ao reggae e forró de favela. Este é universo do “vetim” ― o jovem da quebrada da capital cearense que vive sendo abordado pela polícia (e passando pelo baca ou baculejo, que é a revista policial) mais por sua aparência do que por qualquer suspeita efetiva.

Pirangueiro é como as pessoas veem a gente, é aquele que faz coisa errada, que rouba nas áreas. O vetim é o que a gente é. Vem de pivete (pivetinho, pivetim, vetim), daquele que está só fazendo o seu corre, mas se confunde nesse universo e é visto como um potencial perigo”, explica Leo Suricate, de 28 anos. Ele é um dos jovens que se juntaram para produzir uma série audiovisual de baixo orçamento “da periferia de Fortaleza para a periferia do Brasil”. Com 10.000 reais conseguidos com seus projetos culturais e campanhas de arrecadação na internet, eles aliaram a caricatura do vetim ao humor escrachado e parodiaram a série espanhola La casa de papel para criar La casa duz vetim, que já tem centenas de milhares de visualizações no YouTube. A produção é uma das criações do Vetinflix, um coletivo que funciona como uma espécie de hub de artistas de periferia.

Na paródia à série espanhola, rebatizaram os personagens que tinham nomes de capitais de países com os bairros da periferia. Deram à famosa música italiana Bella Ciao uma versão com Vai ser sal. Incluíram no roteiro elementos de suas histórias pessoais, gírias, trejeitos e o estilo de jovens que não costumam se reconhecer nas telas ― quando há espaço para retratar a favela, as produções do mercado audiovisual costumam focar nas comunidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. E geralmente sob uma ótica exagerada.

Exibição da série "La casa duz vetim" na Praia de Iracema, em Fortaleza.
Exibição da série "La casa duz vetim" na Praia de Iracema, em Fortaleza.Lucas Calisto / Arquivo pessoal

“Na televisão, a favela ou é a melhor ou a pior coisa do mundo. A gente queria mostrar nossa periferia de verdade. Aqui tem suor, ação, arma, repressão policial e estigma. Quando veem a gente com a câmera na mão, acham que é roubada. Mas tem também a nossa identidade”, completa Dudu Suricate, de 25 anos. A ideia trouxe mais frutos do que qualquer um deles esperava. “La casa duz vetim” já foi exibida em um telão da Praia dos Crush, um trecho da orla da nobre Praia de Iracema para onde os jovens da periferia “descem” nos fins de semana, com suas caixinhas de som. A série virou uma vitrine para gerações de crianças e adolescentes e lançou uma semente de orgulho sobre uma identidade estigmatizada até internamente. “A minha tia tinha ódio do jeito que eu falava, dizia que era coisa de favelado. Agora até ela tá falando Vai ser sal”, conta, aos risos, Taís Martins, uma jovem de 18 anos que também participa da série.


A maioria dos realizadores é fruto da geração nem-nem ― ou geração N. São jovens de periferia distantes da sala de aula e do mercado formal de trabalho, incluindo aqueles que desistiram de estudar e procurar emprego por vários motivos, que vão desde a ausência de políticas públicas até a repressão policial e a guerra de facções nos territórios. Imersos num contexto de violência e altos índices de homicídios de adolescentes, eles encontraram alternativas num verdadeiro malabarismo criativo, mesclando bicos de serviços gerais a projetos culturais. “Chegou um tempo que eu disse: não quero ir mais pra escola, não. Era muito distante pra ir a pé. Eu ia com um monte de vetim, e a polícia sempre parava a gente. Dava o baca nos meninos e mandava as meninas irem pra casa. Estou melhor dançando o brega-funk e fazendo o meu corre do que passando por isso”, conta Taís.
Thaís Rodrigues, Taís Martins e Geórgia Pinheiro formam o grupo Princesinhas do Passinho.
Thaís Rodrigues, Taís Martins e Geórgia Pinheiro formam o grupo Princesinhas do Passinho.Lucas Calisto

Mas, antes da série, quase nenhum deles conseguia viver de cultura ou de produção de conteúdo na Internet. Já tentavam crescer nas redes sociais como influencers, seja pelo humor, pela dança ou como MCs. Alguns até tinham muitos seguidores, mas não conseguiam fazer um trabalho que lhes garantisse uma renda. A partir do sucesso de “La casa duz vetim”, muitos desses jovens multiplicaram seus seguidores nas redes sociais. No Instagram ―onde cada um segue o seu projeto individual―, viraram influenciadores da periferia. Recomendam produtos, estampam publicidade em outdoors e são patrocinados por uma marca que confecciona as populares bermudas estilo surfista, que lhes paga um valor mensal para sair nos perfis pessoais deles e nas produções audiovisuais coletivas. O sucesso nas redes é tanto que eles criaram a Agência Suricate, um empreendimento próprio para gerenciar a carreira dos influencers.

“Minha mãe tinha falecido, e eu fiquei sem ter onde morar. Ficava uma semana na casa de cada amigo. Os meninos viraram minha família, e minha vida começou a mudar. Hoje posso ter coisas que sempre quis ter. Comprei uma moto parcelada, um videogame, pago meu aluguel. Vivo da internet. Botamos foi pra gerar”, conta o Pobretion, de 22 anos. Ele, que tinha 40.000 seguidores no Instagram antes da série (há um ano), agora soma mais de 490.000. Recentemente, comemorava nas suas redes a compra do primeiro carro.

Everton Cássio, de 22 anos, já tinha mais de 100.000 seguidores e até conseguia receber alguns produtos por permuta, mas não era possível viver disso. Ele tem uma filha e costumava fazer bicos de entregador de água e barbeiro para se manter. Agora, com quatro vezes mais seguidores, Everton se sustenta do conteúdo que produz para a internet, como paródias, músicas e esquetes de humor. “Sou influencer de periferia, mas sei que sou exceção. Tem muita gente aqui que poderia fazer o que eu faço, mas não tem a mesma oportunidade”, lamenta. Pobretion diz que até a abordagem policial que sofrem mudou com a visibilidade que conquistaram na cidade. “No meio do baculejo, os policiais reconhecem. Ah, são os meninos do vídeo! Terminam a revista, mas o tratamento é diferente”, conta.

Pobretion posa para fotos com crianças.
Pobretion posa para fotos com crianças.Lucas Calisto

Enquanto Pobretion e Everton conversam com o EL PAÍS no conjunto habitacional José Euclides ― a base do grupo, que fica em um extremo da periferia fortalezense e é um deserto de equipamentos culturais―, crianças e adolescentes se aproximam. É fim de tarde de uma sexta-feira, e eles pedem selfies, comentam sobre os vídeos publicados nas redes sociais, dizem querer participar dos próximos episódios da série. Veem aqueles jovens como ídolos, referências que falam sua língua. “Eu acho que esse efeito é porque ocupamos um lugar de artista. Isso instiga muito. Estamos mostrando que os vetim podem recriar o seu lugar e sair dos programas policiais”, analisa Leo Suricate.

Foi com essa pegada que eles criaram a Vetinflix, para reunir e atrair artistas de periferia. É um guarda-chuva que inclui as meninas da dança (Princesinhas do Passinho), os humoristas, os influencers, os realizadores audiovisuais. E que agora se prepara para produzir um telefilme de 45 minutos sobre influenciadores da periferia, que será exibido na Globo local e entrará no catálogo da Globoplay. "Criamos um selo que mistura toda essa galera da periferia. É uma sala de encontro de todos nós para fazer alguma coisa. Uma forma de dizer: faz. E uma porta de saída para as produções”, explica Leo Suricate.

Os projetos coletivos da Vetinflix retroalimentam as produções individuais e, juntos, eles representam uma força produtiva. “Sou do grupo Princesinhas do Passinho, vivo dos patrocínios e das aulas de dança. Já ouvi alunas dizerem que estão criando seus próprios grupos de dança por causa da gente”, conta Thaís Rodrigues, de 22 anos. "Ano passado a gente deu altas palestras, até em universidades! A esses rolês, a gente nunca tinha tido acesso. Estamos fazendo acontecer neste momento”, emenda a dançarina Geórgia Pinheiro, de 23 anos.

Se o Ceará foi cenário do maior furto a banco do Brasil e La casa de papel espanhola produz um grande roubo na Casa da Moeda, o grande golpe dos vetim é outro. “O maior golpe da história de Fortaleza é o nosso. É mostrar que tem autoestima, arte e cultura na periferia”, afirma Dudu Suricate. Há quem diga que a Vetinflix recriou a estética da periferia de Fortaleza, mas os integrantes dizem que apenas deram visibilidade a ela. Eles querem disputar o espaço na cultura fortalezense e mostrar ao país que as periferias são muitas ― com identidades que podem ser muito diferentes das favelas do Rio e de São Paulo. “A gente vem do outro lado do Brasil, com outro jeito de falar e de se portar em frente às câmeras. E temos o nosso humor também. A gente trata polêmicas com um jeito descontraído”, afirma Leo Suricate.

Talmon, durante gravação da Vetinflix.
Talmon, durante gravação da Vetinflix.Lucas Calisto

Os meninos do La casa de papel cearense também romperam com a tradicional estética do humor local e abraçaram novos formatos na Internet. Em suas redes sociais, acumulam seguidores roteirizando seus próprios programas com conteúdos rústicos, sem glamour. “Não tem ninguém de fora tutelando ou dizendo o que eles podem fazer. Estão encontrando o caminho deles, com conteúdos que podemos concordar ou não. Eles quebram aquela insistência do humor cearense pelo baixo corporal, que é sempre a forma mais fácil de você conseguir o riso e a adesão, e também a coisa narcisista do stand up”, afirma o pesquisador Gilmar de Carvalho, da Universidade Federal do Ceará.

Os vetim se distanciam do tradicional show de humor cearense, feito para turista rir, relaxado e sem ter que refletir muito da plateia. “Esses meninos estão fazendo algo novo que vai dar para gente analisar e tentar compreender a periferia, e em especial a periferia de Fortaleza, uma cidade que trabalha com o glamour, os shoppings e os restaurantes badalados”, diz Carvalho. “Aí você vê um grupo de gente que não tem aquele rostinho de digital influencer, ao natural, com uma audiência enorme em todo o Nordeste. Acho que a gente precisa ver como um novo momento do humor cearense, que sai do turista e da plateia e traz um humor que faz a gente pensar”, finaliza. (El Pais)

Beatriz Jucá

 

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