domingo, 4 de setembro de 2022

 


* O cuco implacável*

 Embora o uso das horas seja questão de preferência, a eventual falta de tempo para escrever costuma impor-me, a contragosto, o represamento de tal impulso; salva-me o alerta do relógio do peito. 

Há momentos, nos quais à luz do entardecer da existência e sob o peso das injunções inerentes à idade avançada, o cuco engaiolado vence as grades e em segundos, fraciona o tempo.

Cuco-cuco! Cuco-cuco! Cuco-cuco! 

De pronto, afloram reminiscências de quando – menino ainda – deixava-me seduzir pelo falso-pássaro a conclamar sua libertação daquele presídio-relógio, apenso à parede da sala de jantar da casa paterna. 

Então, em águas da travessia do aprendizado da vida, eu era suprido em minhas carências sem contrapartida alguma à sociedade. Em paralelo, o incansável passarinho prosseguia avisando.

Cuco-cuco! Cuco-cuco! Cuco-cuco! 

Degastadas muitas solas de sapatos, a equação inverteu, o ali e o aqui se aproximaram, o menino virou homem, mas o canto da avezinha persistiu. 

Certa feita, a sala de jantar amanheceu muda: nenhum sinal de vida da avezinha, exausta de cantar estava. Em seu lugar, um espelho. 

Ausência sempre lembrada. 

Tempo a galope, em minha memória o passarinho seguiu sua sina, autêntico moto-perpétuo. Seu canto, porém, não mais era o mesmo. Transformara-se em tiques e taques, ora contínuos, ora descompassados, tal como o matraquear das máquinas datilográficas da prisca juventude.

                                                                                               Tic-tac, tic-tac, tic-tac. 

Belo dia, ao mirar minhas cãs - espelho da sala do finado presídio-relógio -, dei-me conta dos tiques e taques serem inatas arritmias no “lugar onde ninguém pisa”. Um marca-passo sufocou, para sempre, o pássaro engaiolado ao peito. 

Agora, em instantes melancólicos, relembro o cuco implacável e penso melhor seria se houvesse me olvidado dos feitos não poéticos da vida.

                                                                                                Tic-tac, tic-tac, tic-tac.

Paz e poesia são meus desejos.



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