domingo, 25 de setembro de 2022

 


* Crônica de um parto inesperado *

- A vida como ela é –

 

             Em 2021 completaram-se três anos do final desta história familiar

de transcendental importância, aprendizado tardio, mas enriquecedor.

Aos fatos, pois. 

Despencam as derradeiras folhas do calendário.

Pairam ameaças de submersão das ilusões perdidas e, ante o receio de outros tropeços, manda a prudência náutica, dar-se ao mar tudo quanto não sirva. 

Assim, no enorme lago-oceano de nossos sentimentos e pesares, considero importante desvencilhar-nos do excesso de bagagem, risco à navegação de nossa nau. 

É o que agora faço. Eia, pois, carga ao mar! 

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O desenlace desta história ocorre ao anoitecer de 11 de dezembro de 2018. 

Para entender-se acontecido, retrocedo no tempo. O suficiente para desnudar-se o almejado por dois seres: pelo filho, no alvorecer da vida; pelo pai, no ocaso. Visões de mundo distanciadas mais de meio-século e, quando compartilhadas, inflamaram um abalo de sentimentos, explicável somente pelo amor recíproco, independente dos opostos polos temporais. 

Anotado? Então avancemos. 

Durante quatro anos, guardei no porta-malas do automóvel um banquinho plástico articulado, modelo facilmente transportável. Incontáveis foram as oportunidades em que dele me servi para assistir juvenis embates esportivos, provocava inveja a outros torcedores por não disporem da comodidade. Pois bem, o referido assento trocou de residência: passou a curtir a aragem do sítio, à sala onde convivem meus livros e quinquilharias várias. 

Ali, em momento quando me despi das vestes de trabalhador rural, em direção ao gélido banho ao ar livre, o banquinho, com ares de quem se tem por esquecido, com olhar suplicante, reclama a falta das partidas de futebol: queria continuar a dividir comigo tais prazerosos instantes. Partiu-me o coração, o inanimado diálogo. Devolvi-lhe olhos compreensivos e prometi intentar retorno aos embates. 

Na verdade, eu, um dos atores da trama sabia haver, por detrás das ausências às quais o banquinho aludira, um tsunami de dúvidas e desencantos por parte do protagonista do espetáculo.  Dito ator, naquele momento em seu camarim, desfazia-se em silêncios, apreensivo em não abalar as relações com seus dedicados apoiadores. Assim, deixara o barco correr, sem o pleno encarnar de seu papel. Freava, apenas, as iniciativas dele dependentes. Não deixava, porém, de sinalizar seu desconforto: sinais mal interpretados, tanto por seus parceiros no espetáculo, quanto por assistentes, mais atentos fossem. 

Seres humanos tendem a não perceber, além da fala, da escrita, dos gestos, haver outras formas para afirmar-se SIM ou NÃO. Silêncios também comunicam: às vezes, superam vigorosas reações verbais frente a vitórias ou derrotas. 

Entusiásticos alvoroços, não importam as causas, no meio masculino em particular, materializam-se por vulgares expressões chulas, alto e bom som, proferidas. O protagonista nunca se valeu do citado palavrório, a ponto de seus iguais e seus superiores terem-no como atleta fora da curva, um ator diferenciado. 

Na vida real, aclamar, vaiar, reclamar, aplaudir, em distintos tons e variados compassos, são naturais expressões da alma humana se feliz ou insatisfeita. Comportamentos antagônicos, captados por um olhar mais atento e uma sintonia fina, também podem revelar desconforto do ator com o script. 

Na área comportamental há diversas maneiras de dizer-se não a quem espera um sim e vice-versa. Exemplifico com o futebol, esporte no qual um de meus filhos esmerou-se por cinco anos, intentando ser goleiro por profissão. 

Caso o filho demonstrasse desinteresse em assistir determinados jogos importantes, optando por outra distração, natural seria eu ficar preocupado. 

Igualmente, se o dito não mantivesse depiladas as pernas, rotina no mundo futebolístico, uma lampadazinha deveria alertar meu cérebro. 

Mais ainda: se o filho-goleiro não tomasse conhecimento de convite para participar de determinado jogo, eu deveria deduzir não estar interessado e, devido sua timidez, a mim delegara transmitir a negativa aos promotores do evento. 

Além disso, se eu autorizasse o filho-goleiro providenciar passaporte, ante a hipótese de uma eventual ida para o exterior, com armas, chuteiras, luvas e bagagens e ele, o filho, não houvesse dado um passo em tal sentido, eu iria dar-me conta haver algo errado no arranjo orquestral dos acontecimentos. 

Prossigamos, se o filho-goleiro soubesse que, na pré-temporada, a diretoria da equipe desejava privilegiar jogadores mais velhos, alijando-o por ter “apenas 20 anos”, e o guri nada reclamasse eu, quando nada, deveria tentar traduzir tal silêncio. 

Em paralelo, se o garoto, em vez de conservar-se atualizado no mundo da bola, optasse por desfiar noites em jogos na internet eu deveria ficar preocupado. Afinal, mergulhar no mundo digital seria preferível a assistir replays de jogadas reais? 

Igualmente, se o filho-goleiro, ao retornar dos treinos, não dispensasse a seu equipamento esportivo o devido trato, o pai-velho deveria apurar o faro para rastrear as ondas motivadoras do desleixo. 

Avancemos um pouco mais. 

Se o filho atleta, sem vínculo com clube de atividade contínua, nos períodos da “entressafra”, não cuidasse manter as formas física e técnica, valendo-se de academia e jogos amadores e não se contratasse um preparador de goleiros para seu condicionamento técnico-tático, eu ficaria deveras preocupado por saber bastarem duas ou três semanas de inatividade para um jogador ficar “fora de forma”. 

Mais ainda, se o aconselhasse aproveitar as horas vagas para aprofundar-se no aprendizado da língua inglesa e ele, ouvidos de mercador, adiasse o assunto, eu, além de contrafeito deveria cobrar-lhe a providência. Afinal de contas, ele sabia se surgisse oportunidade em algum país onde o português não sirva, seu inglês precário garantir-lhe-ia segura estada nas lonjuras dos entes queridos.

Concomitantemente, caso o pai-coruja não houvesse cuidado em produzir um vídeo de apresentação do filho-goleiro para alavancar a carreira e ele não aproveitasse as redes sociais para difundir seu trabalho, o velho não iria entender e cobraria a divulgação do portfólio virtual. 

Se, porventura, o pai-antagonista não houvesse reservado um recanto da casa, para fotografias de clubes nos quais o filho-atleta jogou e este não curtisse tais momentos-fotos, o ator mais idoso deveria entender o deslocamento do filho no contexto. 

Encerrando, se eu tivesse coragem de dar ‘nãos’ ao filho-goleiro: não para um novo par de chuteiras, não para outra marca de luvas, não para ‘meiões’ de várias cores, não para viagens várias, não para novos uniformes, tais nãos talvez houvessem facilitado ao filho dizer não à profissão em si. 

Os ‘sins’ do pai brecaram o não do filho. 

Tão receoso em desagradar ao velho, estava ele que, ao pautar seu não, o fez em tom quase inaudível como se confessasse o maior dos pecados: de seus olhos lágrimas transbordaram e, como espadas afiadas, brandiram sua voz. 

Na verdade, este foi o final vivido na inesquecível noite, o derradeiro ato, as dores do parto-partida para outros tempos. Inesperado parto a ferros, doloroso, complicado. 

Naquele epílogo, acometido por uma explosão de lucidez, tudo rememorei num flash e limitei-me a manifestar minha compreensão e meu inabalável amor ao filho-protagonista. 

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Novos tempos, novos sonhos, novos caminhos.

Ao encerrar-se a história abriram-se cortinas para outros atos do espetáculo-vida.

O banquinho converteu-se em referência de agradáveis momentos idos.

De quebra, mais raias ao lombo do velho tigre.



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