domingo, 20 de novembro de 2022

 


*Sopa de letras para aquecer uma noite fria* 

Hoje, para seduzir olhos debruçados sobre as presentes letras, valho-me de passaporte a mim cedido por Paulo Leminski. Poeta-vidente. Não chegou a ser velho, todavia anteviu sempre haver uma primavera por detrás de uma pedra. 

Só mesmo um velho

para descobrir,

detrás de uma pedra,

toda a primavera. 

Prima que não é Vera.

Chama-se, na verdade, Luíza.

Na poesia de Leminski, não mora.

Mas, enamora a quem, à mesa,

prova seus perfeitos pratos,

em palavras postos.

             E, se uma vida é curta para mais de um sonho”,

melhor será sonharmos juntos,

comungando nossas culinárias letras. 

Como?

Não cozinhar como os demais.

Querer sermos diferentes.

Pôr sabor de querer mais

         Isto é, éter nas mentes.

 

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Ao lado onde moro, há exuberante árvore, lindas flores rosadas, folhas pequenas e delicadas, debruçada sobre o muro alto, a agradecer haver nascido por minhas mãos. Há pouco, por ela enamorado, passava eu pelo avarandado lateral da casa. Sobre um par de sandálias, ao acaso, ali deixado, duas folhas outonais, despencadas, amareladas, repousavam. Pensei. O outono quer caminhar, assim como minha vida tem dado passos, em alguns outonos dos anuais maios.

 

Voei nas asas de um longínquo maio, despencando nas bordas da Bahia de Todos os Santos. Aterrissei, para manter-me a trabalhar com tintas. Tintas tais, nem de longe poderia supor, viriam colorir meus textos em outro maio, mais de meio-século após, ao pintar em vez de casarios e fábricas, pratos postos à mesa com o engenho e a arte dos ribeirinhos sobreviventes às enlameadas margens da baía.

Outros maios empurraram minha vida. 

Folhinhas do calendário despencando e, em certo outono-maio de finais do século passado, ainda vivo na memória, dei-me ao desplante – antanho intenso missivista – de ingressar no sagrado território da culinária. Não tanto o estar a bordo de um fogão. Falo do tentar cozinhar palavras inebriadoras das mentes dos quantos, porventura, as masquem. 

Guardei no pote das recordações, os preparos com carne bovina, até então privilegiados: o matambre, o ‘prego’, - os segredos de prepará-los -, e das gordas costelas derretendo-se ao fogo-chão. Mergulhei de corpo e alma, nas deliciosas regalias do tabuleiro das baianas e aprendi provocantes artimanhas, festa dos paladares dos convivas e deslumbramento dos olhos, irmãos gêmeos univitelinos dos leitores. 

Daí, até acudir ao apelo olfativo do dendê, derretendo-se sem deixar pegadas, foi um passo. 

Provei da maniçoba. Verde escuro. Tentadora.

Aventurei-me ao sarapatel. Quase negro. Desafiante.

Fascinei-me pelo acarajé. Tom de cobre. Inigualável.

Mordisquei a cocada. Branca-neve. Viciante.

Aprendi soletrar farofa. Amarela. Indispensável.

Apaixonei-me pelo vatapá. Alaranjado. Divinal.

Esbaldei-me no bobó de camarão. Leitoso. Celestial.

Com moquecas, festas fiz. Multicores. Deslumbrantes. 

Mas, o interessante de tudo é que, apesar de haver sido múltiplo em casórios e filhos, em nenhum dos vividos maios, nascimento de filhos comemorei, nem casei. 

Também não lembro de algum maio, dos mais de oitenta até aqui contados, no qual haja estado em tempos de isolamento e ociosidade quase compulsórios, em favor da minha e da saúde pública. 

É quando rememoro Prima Luíza, em seu simpático linguajar ‘mineirês’, brindando-me, com gostosíssimo e avantajado prato. 

Um autêntico, colorido e inédito ensopado, preparado com costumes atrelados ao imaginário popular, enriquecido com seus silenciosos dias de foragida em sua própria casa. Graças, pois, à “chatice de ficar em casa”, sem diarista para as lides do lar, ela, a Prima Luíza, deu fogo ao fogão à lenha da imaginação, e incorporou aos ingredientes acima, na panela de ferro, moda antiga, o esforço em aprender, desfrutar e tentar uma nova conspiração mineira: a culinária. Deu-se bem na empreitada, salpicando palavras saborosas em seu vocabulário gastronômico, recheado de ‘uai’ com ‘cafezim quentim’. 

Imaginaram a gostosura? 

Provou do caldo, panela ainda ao meio e, não satisfeita de pleno, decidiu enriquecê-lo superpondo mamão verde com carne seca, uma das relíquias da culinária mineira. Nova prova: o fervente conjunto tinha um gostinho de saudades. 

 Que mais posso conspirar, se há tempo à beça e espaço na panela? indagou-se.

Com o esforço de quem quer o melhor, de sabor inédito, às saudades encontradas, acrescentou didáticas pitadas de pandemias de outrora, associando-as a reconhecidos vultos quando ante à tais pestes, produziram pratos apreciados por sucessivas gerações. O que no fundo, no fundo, poeticamente, ela intentou e alcançou com maestria e brilho. 

 

Agora, juntemos às conspirações de Prima Luíza, minhas divagações. 

Novo prato: ‘sopa de letras para aquecer uma noite fria’.

Com uma garantia: pratos de poetas não engordam nem emagrecem,

apenas aquecem. 

Assim, espero haver aquecido os corações de quem se encorajou, e desta sopa provou.



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