domingo, 27 de novembro de 2022

 


*Carta a São Miguel* 

Meu caro São Miguel, afamado arcanjo.

Certo amigo - há mais de meio-século -, tempo no qual jamais testemunhei manifestações dele junto a seres extraterrestres ou celestiais, como queira, surpreendeu-me com uma “oração poderosa” segundo ele, dirigida a vossa santidade. Apenso à dita, o recado segundo o qual eu teria assegurada vossa proteção “por até mais oito anos”, desde como é rotineiro em negociações de terráqueos com divindades – ‘toma lá, dá cá’, também corriqueiro aqui na Terra -, eu oferecesse uma contrapartida. Qual? Repassar a oração a mais oito amigos. 

Foi quando me perguntei. Se para alcançar oito anos de proteção de vossa divindade deverei repassar a invocação a oito amigos, não haverá em tal contrato a propalada “garantia estendida” tão em voga? Tipo amigos mais, mais anos de proteção? 

Ante tal dúvida, em vez de retornar ao emitente da proposta, houve por bem me reportar à vossa santidade, pois tirante o caso da garantia estendida, não foram esclarecidas as razões para invocar um arcanjo, alta hierarquia desde quando nos conhecemos por gente e, como reza a crença, tenho assegurado um exclusivo anjo da guarda. Refiro-me ao conhecido ‘Santo Anjo do Senhor, meu zeloso Guardador’ em tempos nos quais Papai Noel entrava pela chaminé na casa de meus avós.

 Muitos membros do exército angelical, talvez não estejam bem cumprindo suas incumbências, tantos são os absurdos cometidos contra a vida humana e, por isso, estamos sendo compelidos a requerer, São Miguel, um reforço protetivo de oito anos, mediante oito módicas remessas da oração a amigos. 

Eu sei, São Miguel, vossa santidade jamais irá concordar com tais negociações. Por este motivo recusei ampará-las. Sei também, amigo, permita-me a familiaridade, anda ocupadíssimo com tantos pedidos, dado ao incremento da demanda oriunda do assanhamento internáutico do Ctrl+C seguido do Ctrl+V. Coisa fácil, para quem não gosta de escrever e entope as redes sociais com baboseiras por crer tanto seja interagir. 

Afora isto, confessar devo, tenho cá minhas dúvidas quanto à eficiência da celestial tropa, composta por bilhões de seres, um para cada vivente nesse vale de lágrimas. Constato, no caso particular de meu mundinho-pedaço-de-terra-baiana, a angelical proteção estar falhando ou venha sendo um tanto seletiva. Haja vista os atormentadores azares sobre as vidas, tanto dos desvelados da sorte, quanto dos portadores de sangue camita.

 Assim, meu benévolo São Miguel, não leve em consideração haver recusado aconselhar oito amigos meus. Muitos viventes não gostam de se desnudar em letras e compensam seus silêncios com repetições de mesmices várias, entre elas as tais orações ‘poderosas’. 

Além de quanto disse, meu caro arcanjo, mesmo não concorde com minhas opiniões, para não pense eu descrer de sua capacidade de operar maravilhas a quem tem fé, jogo o jogo como vem sendo jogado, ou seja, faço uma proposta. 

O amigo, referido ao início desta missiva, hoje viúvo e segundo constato, converso e piedoso - chegados os anos dos pecados nos rejeitarem - deve-me resposta a convite sempre renovado para irmos ao Vale do Jiquiriçá, tratar de tema de nosso comum interesse. Dispenso especificar o assunto, pois vossa santidade e ele, bem sabem do quanto se trata. Meu convite pende há mais de seis anos, e sempre que o reitero a resposta tem sido sepulcral silêncio ou, quando muito, algo como a oração objeto da presente correspondência. 

Negócio seguinte: se ele for o convencido a marcar data para nossa viagem, prometo em vez de oito, oitenta reproduções do feito alcançado por vossa intercessão. 

Aproveito os Correios não estarem em greve, para lançar mão do presente contato epistolar, terra-céu, e falar-lhe, meu caro arcanjo, de um santo não propriamente santo no sentido litúrgico. É beato tido por santo, padroeiro da terra onde vivo. Aqui, o templo devocional é próximo à campa onde serei hospedado, segundo asseguram-me, rumo à vida eterna. Não sei se o beato já lhe foi apresentado, devido aos milhões de anos entre vossas vidas terrenas. Falo de São Gonçalo do Amarante, santo português com o qual, devido à facilidade de idioma, sou dado a intimidades e figura em vários escritos meus. Santo de casa não faz milagres, mas... 

Valho-me ainda, do raro ensejo de nosso letrado encontro, para agradecer ter em você, Miguel, quem com sua espada protege a necrópole, na qual minha mãe e meu irmão esperam encontrá-lo em algum recanto da quarta dimensão. Refiro-me ao belo cemitério de São Miguel e Almas, na capital gaúcha. Quem duvidar de tal encanto, e quiser confirmar minha assertiva, basta acessar o site cemiteriosaomiguel.org.br 

É claro, lá não se irá encontrá-lo, caríssimo Miguel, mas ter-se-á testemunho da nobreza como devemos tratar nossos mortos. Graças, bem sei, à intercessão de vossa santidade e aos ‘caraminguás’ pagos para manter-se aquela necrópole linda.



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