A noite é uma Arca de Noé ao avesso, da qual desembarcamos para nosso dilúvio. Ela nunca é fato consumado, é sempre véspera. Nos foi dada para vivermos a escuridão que nos habita, pecados que nos consomem, e jantar à luz de velas. Noite é confessionário e seu gozo é hóstia consagrada. A noite é dos pardos, mas convém lembrar que nem todos têm sete vidas.
Há noites que são breves cardumes; outras, se recusam a ter fim. Que a noite não passa de uma longa demora. Suave como neblina no céu, olhar de amor, anestesia geral; densa como rio de lava, mágoa de amor, ranhura no nervo. Noite é anonimato e anonimato nunca é bom conselheiro. Ela desce igual para todos, mas cada um tem a sua que noite é cardápio. Nele, todas as noites felizes são iguais; as tristes cada uma é a seu modo, porque costuma ser mal frequentada. Noite nunca é causa, é consequência.
Nascemos sem noite para chamar de nossa, mas um dia ela nos alcança. E a primeira vez que faz noite quem amamos cede em outra boca. Por isso, noite tem duração, tem bainha, para não antecipar a morte- fim de quem vive, ou solidão- fim de quem ama. Que as pelejas da noite são puro visgo.
Noite é corpo suado, amor traído, sanduíche de trailer na madrugada. Embriaguez da alma, ressaca de bebida ruim, dor de cabeça de merda feita. A noite é uma luva de malfeitos. Noite é atentado; nós, vítimas. É saia curta, gole de cicuta, filho da puta. É festa de rua, dança colada, procura. Ou caça. Certeza de tontos, esperança de todos. Noite são poros abertos vazando desesperados pedidos de amor. É polinizar os desejos para engravidar a fertilidade do outro.
Noite não redime, catalisa. Não se oferece em pequenas porções. A noite é dose. Não olha para fora, mas para dentro. Sem indulto, alforria, da memória. A noite é fúria e som. Ela chora, vibra, grita, soluça, rosna, berra, urra, geme, pois disso é feito seu ofertório. É porção clandestina, taça de vinho, acordar arrependido de não dormir com vontade. A noite é debulhar grão a grão a vagem dos medos e risos para alimentar o estrangeiro que vem morar em nós todas as manhãs. Não é profecia, é vaticínio.
A noite é decote, delito, desatino. Ou navegar à deriva na mais tenra certeza que dormir abraçado aos filhos, depois de brincar, é ir ao parque de diversões de Deus e ser o Criador. Ela é soleira de casa, para onde voltamos quando o amor nos resgata do exílio e faz noite pela última vez.
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