“Nenhum de nós caminha duas vezes pela mesma rua” é um bom pensamento filosófico para começar um texto sobre uma rua que não possuo. Tenho inveja de quem tem uma rua, com turma, amores, casos, que são lembrados em encontros históricos com camisas uniformizadas e relatos de perrengues de uma memória comum. Eu tenho muito nada para ter uma rua.
Não que não haja ruas que tenham marcado algum momento de vida, mas não sou homem de uma só. Como me disse João Calça Curta, definitivo: “Tua vida tem mais retalhos que pano inteiro”.
Teve a Euclides da Cunha, na Graça, em Salvador, zona nobre, mas cuja graça era uma namorada que morava em apartamento, sozinha, o que fazia ser a rua mais linda do mundo para um garoto colegial – que a alma de uma rua nunca é o urbanismo que a desenha, mas os acontecimentos que a ornamentam.
Houve o Beco dos Artistas, no Garcia, transversal da avenida principal em que morava, que passou de abandonado, com lixo, para um lugar meio escuro, de bares de vida louca e sem lei – e porres formidáveis. Segundo endereço de moradia, perto da pensão, sede honrosa de nossa turma que não costumava levar o desaforo da sobriedade para casa. Quando alguém ia me procurar, primeiro passava no beco e os garçons informavam se tínhamos passado bêbados por lá ou íamos nos embebedar mais tarde. Discutíamos e fazíamos poemas que oscilavam entre o ruim e o horrível, mas com profundas certezas de dizermos emoções universais libertadas pelo álcool e o sexo cada vez mais possível. Era a rua do encontro, de personagens inclusivos e exclusivos. Durou menos que a vontade – que toda vontade é sempre maior que o objeto do desejo –, mas o bastante para ser imortal.
Também morei por anos no último andar de um grande hospital, em Brasília, mas não sei se posso chamar de rua um imenso andar de enfermarias adaptadas para moradia de médicos residentes. Os que chegavam iam para o “chiqueirão”, e os residentes avançados, para os apartamentos. A vizinhança, peculiar, eram dez andares lotados de pacientes, abaixo de mim, que eu encontrava no elevador ao descer para o café. Usavam soro, estavam indo para a químio ou diálise – de que eu dera a notícia na tarde anterior. Não é preciso dizer que a vizinhança mudava muito, mas foi a rua que me fez cruzar para o outro lado da rua que a vida exigia.
A rua, rua mesmo, que tive – ou estive mais perto de ter – a rigor, nem era uma rua, ou era uma rua rural, em frente à casa da roça, sem luz, e que seguia o ritmo circadiano do sol e da lua. Nela eu era capitão invencível e os que passavam eram apenas estrangeiros temporários. Lá fiz o que sou e se pudesse passar por ela de novo, ah, antes, eu mandava, eu mandava, ladrilhar.
𝗖𝗲́𝘀𝗮𝗿 𝗢𝗹𝗶𝘃𝗲𝗶𝗿𝗮 - Tabaréu, feirense, médico, professor, apaixonado por palavras, pessoas e a vida. Sou de mato, vinhos, cafés, pratos, prosas - falada e escrita. Essa tem sido minha receita.
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