Tratado sobre a velhice
Fantasia com laivos de realidade
Abertas
as asas da imaginação, plano no silêncio de himalaias lonjuras para meditar
sobre tema terreno comum aos mortais, a velhice.
Por
sorte, desfruto a felicidade em ter invejável plêiade de amigos de idos tempos,
com os quais me mantenho sintonizado. Outro dia, junto a um deles, ao adejar
sobre garimpagens virtuais, seus sucessos e bateias, associei a velha pena à
aceitação da moderna tecnologia: por isso, opto em viajar nas ondas das redes
sociais.
Superada a barreira dos oitenta anos, introspectivo, proponho-me ao desafio de resgatar opiniões de tais membros honorários da velha guarda a respeito da ancianidade. Ajo dessa forma, para compreender-me; destarte, entender a humanidade e sua finitude. Para tanto envido apressado esforço pois, “quando dizem que estou velho demais para alguma coisa, tento fazer mais rápido”. ¹
Ser
homem-velho não é tarefa singela; quem transita na via de acesso ao ocaso da
existência o sabe: calma, cautela e caldo de galinha, de preferência. Os jovens
– intimoratos -, todavia, agem como se a velhice nunca lhes vá chegar; por isso
“nós, os velhos, desconfiamos dos jovens porque já fomos jovens”. ² Alguém há de ponderar não ser tão
jovem nem tão velho por andar pelos quarenta anos e curioso indagará qual o
marco entre o antes e o depois. Fácil responder, “os primeiros quarenta anos de
vida nos dão o texto; os próximos trinta, os comentários”. ³ Confesso, mesmo superado o prazo dos trinta anos, ainda lutar
para vencer as escarpas da subida, “envelhecer é como escalar uma grande
montanha: enquanto se escala as forças diminuem, mas o olhar é mais livre, a
visão mais ampla e mais serena.” ⁴ Se, por um lado, as forças diminuem, a
perspectiva ampliada pelo gradual afastamento dos fatos concede
serenidade. Açodamentos e impaciências
viram coisas do passado.
Dia
desses, outro interlocutor tratava dos temporais etários que nos atemorizam e
radicalizou: “a velhice é um tirano que proíbe, sob pena de morte, todos os
prazeres da juventude” ⁵; em
meu parco entendimento, há controvérsia. Tenho-me aventurado em algumas
peripécias joviais e permaneço vivíssimo; é lógico, com moderação, nada de
excessos. “O velho não pode fazer o que o jovem faz; mas faz melhor” ⁶, além disso, “se você quer ser velho por um
longo tempo, envelheça logo”. ⁶ Recado dado, “o envelhecimento ainda é
o único meio que foi encontrado para viver muito tempo”. ⁷
Agora,
engreno a marcha-a-ré na linha temporal e aporto na área gaúcha da colonização
alemã. Recordo aquela gente loura de olhos azulados ao se referir aos idosos da
família, “as árvores mais antigas dão os frutos mais doces”. Como seríamos não
fossem nossos avós a edulcorar nossas infâncias? Não são doçuras, todavia,
todos os lances da velhice. Achaques da idade, desencantos na contramão de
sonhos, impaciência frente a comportamentos modernosos, arrepio às inovações,
rabugices - reclamações sem conta - induzem a uma constatação óbvia, “um homem
não é velho até que comece a reclamar em vez de sonhar”. ⁸
Sonhos...! Quando estudei em São Paulo, tempos de
grafiteiros em muros das nobres mansões dos bairros chiques paulistanos,
anotei: “um homem não envelhece quando sua pele enruga, mas quando seus sonhos
e esperanças se encolhem”.
Esperança...! De tanto ouvir “quem espera sempre
alcança”, embarquei nessa canoa. Não me sinto velho e aplaudo um desconhecido
ter ousado afirmar ser “velho aquele que considera que sua tarefa está
cumprida; aquele que se levanta sem metas e se deita sem esperança”. Por viver
em manobras com enxada, caneta, pás, papéis e picareta, como nunca, entendo a
velhice quando ”tira o que herdamos e nos dá o que merecemos”. ⁹
Entre as prendas do tempo, destaco a vida, a maior das paixões, pois “aqueles
que realmente amam a vida são aqueles que estão envelhecendo”. ¹⁰
Tirante tudo, quem ingressou no território da idade
provecta há de entender um fato insofismável: “na juventude aprendemos, na
velhice, entendemos”. ¹¹ Entendemos o quê? Nem tudo reluzente é ouro; há regras,
mas também exceções. Andava por tais pensares quando inesperado pombo-correio
pousou junto a mim portando mensagem de amigo desconhecedor dos atuais
instantâneos meios de comunicação; ainda há gente assim. O recado? “O jovem
conhece a regra, mas o velho conhece as exceções”.
¹² Sempre haverá alguém a
questionar quando se há de conhecê-las. Para atender ao dilema, socorro-me de
um provérbio hindu anotado à cabeceira de minha cama: “a velhice começa quando
a memória é mais forte que a esperança”. ¹³
Ante tal fato, intento pôr esperança no dia a dia,
embora minha memória esteja afetada pelas dores decorrentes das perdas ao longo
da peleja-vida. Dores assim nos envelhecem demais - “nada envelhece tanto
quanto a morte daqueles que conhecemos durante a infância” ¹⁴ – assertiva compreensível, eu mesmo tenho
superposto a memória à esperança. Padecemos insuportável pesar ante as perdas
ao longo da peleja-vida. Com o coração magoado e a memória condoída, relembro a
morte de Geórgia no esplendor de seus dezenove aninhos, amiga de meus filhos da
mesma faixa etária. Consola-me saber “ninguém é tão velho que não possa viver
mais um ano, nem tão jovem que hoje não possa morrer”. ¹⁴ Pura verdade, dá
calos nos costados de quem atinge a etapa temporal da contagem regressiva, mas
exige equilíbrio, pois “a maturidade é recuperar a serenidade com a qual
brincávamos quando éramos crianças”. ¹⁵
“Todos queremos
envelhecer e todos negamos que chegamos”, ¹⁶ não
vejo, entretanto, motivo para não nos darmos conta da vizinha viagem ao machadiano
“eterno aposento”. Negar a realidade provoca rugas no espírito, elas “nos fazem
mais velhos que as do rosto”. ¹⁷ Sensatez é nos mirarmos no
espelho e não nos assombrar com os danos na face. Dentro de nós, sempre
residirá enganador desejo de congelar o tempo. Trata-se do segredo de
envelhecer, bem traduzido por quem declarou certo dia: “a arte do
envelhecimento é a arte de preservar alguma esperança”. ¹⁸
Esperança...! Ei-la aqui outra vez. Para avivá-la, como lascas de lenha seca atiçam o fogo, aprendi cinco coisas antigas muito especiais: “esposas idosas, velhos amigos para conversar, velha lenha para aquecer, velhos vinhos para beber e livros antigos para ler”. ¹⁹
Puxa vida! Os velhos livros para ler! Vivo a reler autores clássicos, ora o velho Machado. Trata-se de leitura em momentos de voluntária solitude, na paz do meu sossego, quando rememoro pensamento de amizade remota: “o segredo de uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão”. ²⁰
A esta altura prosei demais, pequei por excesso, mas fui sincero. Muitos amigos me ajudaram nessa empreitada. É inadiável a obrigação de encerrar. Para fazê-lo com chave de ouro – assim o espero -, vale divertida expressão de outro amigo finado aos 62 vividos, “o velho leva dois anos para aprender a falar e sessenta para aprender a calar a boca”. ²¹
Na qualidade de velho mordedor de palavras vãs, calo-me.
Silentes abraços.
1. Pablo Picasso (1881-1973) – espanhol, pintor, poeta,
dramaturgo. (82a)
2.
William Shakespeare (1564-1616) – inglês, poeta,
dramaturgo. (52a)
3.
Arthur Schopenhauer (1788-1860) – alemão, filósofo.
(72a)
4.
Ingmar Bergman (1918-2007) – sueco, cineasta. (89a)
5.
François de la Rochefoucauld (1613-1684) – francês,
autor de máximas e memórias. (71a)
6.
Marco Tulio Cícero (106-43AC) – romano, orador,
político, escritor e filósofo. (63a)
7.
Charles Augustin Saint-Beuve (1804-1869) – francês,
crítico literário. (65a)
8.
John Barrymore (1882-1942) – norte-americano, ator.
(60a)
9.
Gerald Brenan (1894-1987) – britânico, escritor e
hispanista. (93a)
10. Sófocles
(496-406AC) – grego, dramaturgo. (90a)
11. Marie von Ebner
Eschenbach (1830-1916) – austríaca, romancista. (86a)
12. Oliver Wendell
Holmes (1809-1894) – norte-americano, médico, poeta, professor. (85a)
13. Julián Green
(1900-1998) – norte-americano, escritor. (98a)
14. Fernando de
Rojas (1465-1541) – espanhol, dramaturgo. (76a)
15. Friedrich
Nietzsche (1844-1900) – alemão, filósofo, poeta, filólogo. (56a)
16. Francisco de
Quevedo – (1580-1645) - espanhol, político, escritor barroco, poeta. (65a)
17. Michel Eugene de
Le Montaigne (1533-1592) – francês, humanista, filósofo, jurista. (59a)
18.
André Maurois (1885-1967) – francês, escritor. (82a)
19. Auguste Emile
Faguet (1847-1916) – francês, autor, professor, crítico literário. (69a)
20. Gabriel Garcia
Marques (1927-2014) – colombiano, escritor, jornalista, ativista político.
(87a)
21. Ernest Hemingway
(1899-1961) – norte-americano, jornalista, romancista, contista. (62a)
Nenhum comentário:
Postar um comentário