* Cortes e Recortes *
Cinco horas, sozinho, percorrendo estrada sertaneja – mandacarus como paisagem –, consumidas para rever o filho futebolista. Aos sábados recém-paridos pela noite, armas e bagagens à mão, partia de carro rumo à bela Senhor do Bonfim. À época, o filho nº 9 integrava equipe feirense sub-20, cujo mando de campo era sediado na referida cidade.
Por companhia nas solitárias idas e vindas, comigo viajava a musicalidade poética de um cantador nordestino da melhor estirpe, Jorge de Altinho.
“Se o Deus de lá é o Deus daqui, não saio do meu Cariri”, cantava o menestrel. Fosse isso pouco, transbordava-se em poesia ao versar o rio vazio “que de água nem um fio, sem saber se vai chover”.
Viagens paternais e afetivas aconteciam após o decurso das semanas com leque aberto às atividades no sítio, a manter-me em cuidados com a terra-mãe; terra destinada, um dia, a nos acolher em seu regaço.Pano de fundo do viajar sertanejo: recortes da beleza do leito seco de um rio e da exuberância de majestosos mandacarus jacentes, arremetendo à ideia de qualquer um deles – tantos são - haja inspirado a modernista Tarsila do Amaral em sua famosa obra antropofágica Abaporu.
Inspiração também associada a um sol, o mesmo de fulgurante radiação, avesso à chuva, a inundar de reverberações a interminável trilha preta à minha frente.
A tais sentimentos recortados, ao viajar sem pressa - saudade do filho a tiracolo -, certo vazio me importunava; de minha mente tudo se evadia, só restava aquele rio “que de água nem um fio, sem saber se vai chover”.
Ainda bem, após sumir o precioso líquido, fazedor de o rio sentir-se o tal, em seu leito brotam acinzentados seixos, luzidios por viverem a vida a rolar e a refletir como raios laser a ofuscante luz do sol.
Luz
que encandeia as vistas e, decidida, comprime as pálpebras.
Luz que franze o cenho e, sem pedir licença, invade o íntimo.
A mente me socorre, enchendo com vontade de (d) escrever a exaustão e o vazio sentido; assim, graças aos sentidos, a pena encaro, o olhar paro, apuro o faro.
Avanço.
Sinto na língua o sal da terra em seu transe hídrico e ouço a matutina sonoridade dos papa-capins nos quintais de onde vivo.
Aceso, pois, eis-me aqui, incorrigível sonhador, a anotar existenciais recortes.
Eu
disse recortes.
Cortes
seria dizer demais.
Seria anular o nada que poderá fazer falta no futuro.
Fui
curto e grosso.
Um
abraço
de aço.
Graças
à homofonia,
um
corte com osso,
no
domingo, asso
e
traço.
Um comentário:
Nossa, que texto! Deve ser este, o sentimento dos que deixam a vida passar sem nada fazerem, quando querem acordar não dá mais tempo, ficando apenas com o vazio de um rio que já não o é.
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