*(Des)crenças*
Mesmo assim, sigo submisso ao sol no zênite, divisor das horas claras, para singrar nas “águas virtuais que banham os continentes-gentes lindeiros a meus afetos”.
Agora, em mesa ao calçadão da praça central - luz filtrada por frondosa árvore a produzir inquietas sombras em minha escrita -, percebo a inesperada presença de coetâneo amigo. O recém-chegado, longevo de invejável memória, é leitor contumaz, foi seresteiro boêmio, poeta parnasiano e sonetista, é agnóstico, celibatário e abstêmio.
Cumprimentos de praxe, a conversa ruma à inventiva humana de fracionar-se o tempo, como se fora um bolo de aniversário. A cada jornada, uma fatia, uma esperança; a cada ano, horas novas a conferir a ilusão de um recomeçar – promessas e perdões.
Especulávamos, ainda, sobre inexistir tempo perdido, perdoar o passado para não atormentar o presente, rir ser o melhor remédio.
Conversávamos sobre os assuntos acima e acerca da influência da religião em nossas vidas quando, sem convite, circunstantes curiosos perscrutam nossa conversa. Rápidos, por divertida troça via olhares cúmplices, aprofundamos o tema. Em dois minutos, afugentamos cabeças afeitas a jogos, politicagem, assassinatos, assaltos, acidentes, enchentes e infelicidades domésticas.
Ao falarmos das crenças religiosas, pontuei ora não me alinhar a nenhuma, registrei vivermos em área do planeta Terra onde a cristandade se arraigou e, por consequência, sermos cristãos por formação. Ungidos, batizados, crismados, ou seja, “confirmados” na fé católica. Além disso, muitos de nós, mesmo divorciados, seguimos “indissoluvelmente” casados.
Com tantas “armadilhas” engendradas vida afora, desde a iniciação na pia batismal - quando nossos padrinhos por nós falaram - até o famoso “sim” matrimonial, ir-se de encontro ao doutrinado não é tarefa fácil.
De sim em sim, as crenças sedimentaram-se. Não nos foram propiciadas alternativas e, em respeito aos ancestrais, vivemos a rezar na mesma cartilha, a dedilhar contas do mesmo rosário, a entoar mesmas ladainhas. Mantras enraizados, a ponto de vezes muitas, desistirmos em questionar “verdades” repassadas por gerações.
Acordes, o amigo e eu despedimo-nos, não sem antes erguer um brinde à vida e às nossas (des)crenças. Ele, com água; eu, com a ‘loura’ maltada de praxe.
Ao retornar ao lar, reli o anotado e dei-me por satisfeito. Assim, concluo a presente navegação nas águas virtuais de meus “contingentes-gentes”, cônscio que os cabelos brancos de meus filhos, abastecem e aceleram a nave propulsora de minha viagem em direção ao “assento etéreo”.
Restam-me poucos
quilômetros para cogitar sobre racionais dilemas da existência.
Becos-sem-saída, mas bom exercício para nutrir as conexões neurônicas e trancar
portas à indesejada visita do velho Alzheimer.
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