domingo, 18 de fevereiro de 2024

 


Ensaiando novos passos

        Ai do aprendiz de feiticeiro propenso à escrita, se nos ensaios da escola de letras, não aprenda o compasso da ginga passista. Da mesma forma, se sua propensão for a musical, pobre de si, se não compareça aos ensaios dos piques, repiques e paradinhas da bateria da escola de samba. Mais ainda: uma tragédia será, caso amante da arte teatral, não marque presença aos ensaios do espetáculo. 

Ensaios são uma forma de desafio, no qual os protagonistas intentam novos caminhos, confrontando suas performances com a atuação predominante, tida por muitos como insuperável.  Agem, em geral, por intuição, mãos calejadas por empunhar a pena ou dedilhar cordas e teclas. 

Com o avançar dos anos venho migrando, de forma sutil e imperceptível, de crônicas para ensaios; melhor dizendo, tentando combinar os dois estilos. 

Dileto amigo, lá das Alterosas, de prenome José – não se trata do carpinteiro – carpiu em minha telinha mágica, ter-me por ‘ensaísta’, imerecido elogio. Mais apropriado seria ‘aprendiz de ensaísta’. 

Atento observador, “meu bom José, diga-se, se por um lado revelou seu afeto, por outro, seu olhar afeito às sutilezas dainculta e bela flor do Lácio, derradeira. 

Por qual motivo o terá dito? 

Entenda-se.

         A lei formal do ensaio é a heterodoxia. Também chamada heresia, no sentido de ideia ou prática de encontro ao que, um grupo, estabelece como doutrina. Como ensina Theodor W. Adorno “na infração à ortodoxia do pensamento torna-se visível na coisa, àquilo que, por secreta finalidade objetiva, a ortodoxia busca manter invisível". Quando a pretendida visibilidade emerge, apresenta-se um confronto de ideias. 

Ensaios, mesmo em tom poético, por serem gênero textual crítico e interpretativo, constituem forma de linguagem a ser encarada reflexivamente. 

São textos, músicas, peças, para os amantes da liberdade de expressão. O verbo ‘ensaiar’, por si mesmo, arremete à necessidade de experimentar algo, a vontade de alcançar o definitivo, pretensões na realidade inalcançáveis. O definitivo é aparentado com o infinito, família residente a anos-luz de nós. Mas, como pretensão e água benta, cada um... 

Resumo da ópera. Não é outra a razão, senão a heterodoxa, a alavancar trechos de alguns escritos meus, a exemplo dos recentes, “O Vento e a Pedra”, “Rindo de mim mesmo”. 

Não posso negar minha paixão por nosso idioma. Língua tida por inculta por derivar do derradeiro latim vulgar falado pela plebe, no Lácio - região italiana tendo Roma como epicentro - é a mais próxima do idioma mater, entre as demais línguas neolatinas. 

Língua com sutilezas fonéticas, irreproduzíveis por falantes de outros idiomas da mesma raiz. Só para exemplificar, temos três distintas pronúncias para a vogal ‘O’: aberta (ó); média (ô) e fechada (u) isto se denota, facilmente em ‘avós’, ‘avôs’, ‘avos’. Um amigo cubano de saudosa memória, homem deveras inteligente, mesmo tendo vivido quase 40 anos no Brasil, não conseguiu assimilar tais dificuldades. Para ele, as três palavrinhas soavam da mesma forma; nós que as recebemos de berço, ‘tiramos de letra’. 

Por isso, nuances como a acima citada constituem a beleza exaltada pelo parnasiano, Olavo Bilac, no primeiro verso de seu famoso soneto “Língua Portuguesa”: “última flor do Lácio inculta e bela”. 

O hábil manejo da língua possibilita ao ensaísta sair-se com ensaios de saias rodadas, rendadas, plena de adereços, heréticos pensares - ginga passista aprendida na escola de letras. 

Isso sem fugir ao rigor em dosar o discurso, propiciando certo equilíbrio que permita aos leitores, tomarem os feitos como reflexões e não intenções apologéticas. 

Afinal, há de se ouvir também Padre Antônio Vieira, escandindo palavras em seus Sermões, na velha barroca Bahia: 

“Se tudo são varas, não é sermão, é feixe; se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete.” 

Basta substituirmos ‘sermão’ por ‘ensaio.’



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