domingo, 4 de fevereiro de 2024

 


* Precedente baiano*

 

             Certa feita, produzi singelos versos nascidos de verbos muitos.

A coletânea intitula-se “Amor pela Vida”; hora dessas irei publicá-la. Tais versos, como requer a boa prosa, mesclam ficção e realidade. Assim, uns são oníricos; outros, reais. Entre os últimos, para início de conversa, recordo:

                                                   Carrego

caixão de amigo.

Lamento

tristeza da tumba.

Pesar nascido evocando a morte de amigo, em 2016, quando beirava 90 anos. Falecera em Salvador, vindo a ser sepultado na província onde vivo. 

O finado fora, em vida, figura ímpar. Casado, sem filhos, deixou a viúva como sua herdeira universal. A dita, em função da morte de seu amado, a par de profunda depressão, detonou o mal de Alzheimer e, portanto, pouco ou quase nada pode usufruir dos bens herdados. 

Não nos preocupemos com isso, já que sobrinhos dela, residentes em São Paulo, os quais aqui nunca fincaram pés, apressaram-se e aprestaram-se em conhecer a província. 

Comportamento de ululante obviedade, sendo desnecessárias quaisquer considerações quanto a tal gesto de comovedora bondade para com a tia viúva. Versão repaginada de filmes, assistidos quando ainda acreditávamos em coelhinho da Páscoa. 

Avancemos, limitando-nos ao casal, enquanto vivo o marido.

 Cada qual percebia gorda aposentadoria, ambos advogados, além de funcionários estaduais por largos anos. A ausência de limitações financeiras, proporcionou-lhes usufruir incontáveis viagens, mundo afora. Independente de manterem amplo apartamento na Capital, eram proprietários de confortável casa de praia no valorizado Litoral Norte e de aprazível chácara em São Gonçalo dos Campos. 

Adejavam entre as três moradas, borboletas em jardim florido.

Os dois bastavam a si mesmos.

Ele, contador de lorotas, não mantinha amplo círculo local de amizades.

Ela, silente, a tudo ouvia sem pôr A nem B. 

Quando, aos finais de semana por cá apareciam, à tardinha ele postava-se à mesa de bar de nosso calçadão, a comer acarajé com garfo e faca e a entupir ouvidos dos desavisados interlocutores.

Eu, vezes muitas, fui um destes.

Ai de quem, por exemplo, narrasse veraneio em badalado litoral nordestino. Lá vinha ele prosar sobre praias do Mediterrâneo, da costa chilena ou do Caribe. 

Foi, sempre, o mais perfeito demolidor dos pequenos prazeres da plebe.

Explica-se, assim, o porquê de seu isolamento. Consequência de seus bafos de grandeza. Muitos são os casos, dos quais o finado foi protagonista. 

Metido a gostosão, deu-se ao desplante, com mais de 80 anos, em comprazer-se na companhia de garotas de programa, desfrutáveis. Óbvio, lá em Salvador. Nossa cidade, é pequena demais para embates tais. 

Assim foi, finda a festinha, pagou a escapada às duas jovens. Para tanto, emitiu cheque de agência bancária cá da cidade. Conta conjunta: ele e a mulher.  

Esperto, assim se considerava, sabia o cheque não ter fundos e, talvez, pretendesse cancelá-lo sob qualquer argumento. Só não imaginou que as garotas não se conformariam com o calote, vindo – rápidas - dar com os costados por aqui, dirigindo-se pessoalmente ao banco. 

À vista do narrado – cá todos se conhecem – o atendente bancário acorre ao gerente alertando que o cheque de Dr. Fulano estava descoberto. O gerente, de pronto, liga para a residência do emitente.

Quem atende?

A mulher do espertalhão.

Paro por aqui. 

Cidade pequena, inferno grande, costumam afirmar.

O affaire esteve em todas as bocas, rodou pelos quatro cantos da cidade. Marcou época, tanto que ainda lembro. 

O extinto também gozava fama de ser ‘mão de vaca’, ou ‘canguinha’, como queiram. Meter a mão no bolso? Só em último caso.

A propósito - passagem antológica –, próximo a seu final de vida, padecendo de males da idade avançada, enfrentava o rotineiro drama do vai-e-vem casa-hospital-casa. 

Em uma das últimas vezes, quando hospitalizado em Feira de Santana, após a alta médica, recusou-se solenemente a deixar a casa de saúde.

Não houve pedido, reza ou santo, para convencê-lo em retornar ao lar. Também pudera! No hospital desfrutava mordomias de pronta assistência, apartamento privativo, alimentação e medicamentos, tudo por conta do plano de saúde. 

Se retornasse à casa, exceção feita à idosa mulher, não contaria com pessoa para atendê-lo dia e noite. Forçosamente, teria que contratar enfermeira ou cuidadora de idosos. Isso estava fora de cogitação, pois dispenderia seu rico dinheirinho. 

Agora chegamos à parte inacreditável e cômica do acontecido. 

Como o embate sai-não-sai, não saia do lugar, o herói da presente história, só saiu porque o hospital - com endosso da médica responsável pela alta - entrou em juízo com uma ação de despejo contra o indesejado e indesejável paciente. 

Por isso, quando alguém conta algum caso como inédito, não é de se estranhar que na Bahia haja um precedente. 

Encerrando, despeço-me.

Rogando ao distinto

extinto,

releve língua afiada,

espada,

falando de sua vida,

vivida,

abraço você,

que me lê,

por sempre dar-me guarida.



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