sábado, 17 de fevereiro de 2024

Por que ursinhos de pelúcia e palavras cruzadas eram vistos como perigo à sociedade no século 20

Os ursinhos de pelúcia estão entre os presentes mais populares para as crianças e muitas vezes são dados aos adultos para expressar afeto



Eles se referiam às palavras cruzadas, que mais tarde foram vistas como um passatempintelectual.

Elas fazem parte de uma longa lista de atividades de entretenimento que em algum momento de sua história foram bem mal vistos.

A lista inclui desde a leitura de romances, que nos séculos passados ​​era depreciada por levar ao “mau caminho”, principalmente as mulheres, até os videogames, que, séculos depois, causaram um mal estar.

E também os aparentemente inofensivos ursinhos de pelúcia, que fizeram soar um alarme quando começaram a dominar o mundo.

Palavras cruzadas

As primeiras palavras cruzadas surgiram na Inglaterra no século 19, mas para entreter crianças.

Elas só se tornaram um passatempo para adultos depois que o jornal americano New York World publicou as primeiras palavras cruzadas modernas em seu suplemento dominical no dia 21 de dezembro de 1913, às vésperas da Primeira Guerra Mundial.

Quase da noite para o dia, o novo passatempo começou a acumular fãs, cujos números só aumentaram à medida que a guerra avançava e as manchetes ficavam mais sombrias.

A popularidade do que, para muitos, se tornou um refúgio no meio da guerra, cresceu após o final da mesma. A década de 1920 foi um período de expansão para as palavras cruzadas.

E também de rejeição.

Um dos jornais que se recusou a publicá-las foi o The New York Times (NYT).

Os editores da publicação achavam o passatempo apelativo e não queriam fazer uso do que viam como um acessório típico de tabloides como o pioneiro New York World para atrair leitores.

Além disso, de acordo com um artigo do NYT publicado em novembro de 1924 intitulado Uma forma familiar de loucura, na “apropriadamente chamada loucura das palavras cruzadas”, as pessoas cometiam “a perda pecaminosa” de tempo “na busca completamente inútil por palavras”.

“Não ganha nada, exceto uma forma primitiva de exercício mental” e “nada mais é do que uma nova utilização do tempo livre para aqueles que, de outra forma, seriam vazios e tediosos”.

Dois meses depois, o jornal Sacramento Starda Califórnia, publicou uma reportagem afirmando que as palavras cruzadas "roubavam memórias".

O texto contava o caso de um paciente internado que, segundo o diagnóstico do médico, sofria de “um caso avançado de amnésia causado por um vício excessivo em palavras cruzadas”.

Também foram relatados casos de insônia causada por palavras cruzadas, enquanto oftalmologistas alertavam que o hobby causava dores de cabeça e enfraquecimento da visão.

Tremendamente populares, mas, segundo diziam, nocivos (Getty Imnages)

O fenômeno cresceu e chamou a atenção da Europa. Em 1924, o The Times, de Londres, publicou uma reportagem intitulada “Uma América escravizada”, onde dizia que “os Estados Unidos inteiro sucumbiram ao fascínio das palavras cruzadas”.

As palavras cruzadas passaram, segundo dizia, "de passatempo de alguns engenhosos ociosos a instituição e quase uma ameaça nacional".

Segundo o jornal britânico, a estimativa era de que mais de 10 milhões de pessoas gastavam meia hora por dia fazendo palavras cruzadas, quando deveriam estar trabalhando.

“É uma perda de atividade produtiva maior do que perda por greves trabalhistas”.

Mas no ano seguinte, o Reino Unido também sucumbiu à mania, com ninguém menos que a rainha Mary, esposa do rei George 5º, e “outros membros inferiores da família real também viciados” no passatempo.

No entanto, as palavras cruzadas continuaram sendo depreciadas como “ ocupação preguiçosa” e um “hábito insociável”.

Uma mulher britânica chegou a levar o marido à Justiça por ficar na cama até às 11h da noite fazendo palavras cruzadas.

As bibliotecas públicas travaram uma “guerra às palavras cruzadas”, riscando à mão os espaços vazios nas palavras cruzadas dos jornais que emprestavam.

Milhões de pessoas em todo o mundo são “crucibervalistas”: aqueles que resolvem palavras cruzadas (Getty Iamges)

No final, o The Times teve que engolir suas palavras. No dia 1º de fevereiro de 1930, sem alarde, publicou a primeira de suas palavras cruzadas.

Elas se tornariam algumas das melhores e mais famosas do mundo, junto com as do NYT, que passaria mais uma década como o único grande jornal metropolitano dos EUA sem palavras cruzadas.

Só no dia 15 de fevereiro de 1942, dois meses após o ataque aéreo japonês a Pearl Harbor, que acabaria levando os EUA a entrar na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados, é que o NYT cedeu.

Assim como o editor do New York World quase 30 anos antes, o editor do diário decidiu que o passatempo era necessário para os leitores em um momento tão sombrio.

A loucura do ursinho de pelúcia

Tudo começou quando o presidente americano Theodore Roosevelt estava caçando ursos no Mississippi em 1902, mas não encontrou nenhum.

Para melhorar o dia do presidente, assessores dele encurralaram um urso-negro, prenderam ele a uma árvore, e chamaram o presidente para atirar nele.

Mas Roosevelt se recusou, considerando o ato extremamente antidesportivo.

A anedota se espalhou, e um dos jornais que a noticiou foi o Washington Post, acompanhado de uma charge - que mostra o presidente se recusando a atirar em um filhote de urso puxado por um assessor. Essa charge inspirou Morris Michtom, dono de uma loja de doces no Brooklyn, a criar um ursinho de pelúcia.

Depois de pedir permissão a Roosevelt para usar seu apelido, ele o chamou de "Teddy bear" em sua homenagem, e começou a vendê-los.

Ele logo se tornou o brinquedo obrigatório das crianças americanas, atraindo a ira de um padre chamado Michael G. Esper.

Do púlpito de sua igreja em St. Joseph, em Michigan, ele lançou um ataque devastador contra o ursinho de pelúcia.

“O suicídio racial, o perigo mais grave que esta nação enfrenta hoje, está sendo promovido e encorajado pela moda de substituir as bonecas tradicionais de nossa infância pela monstruosidade hedionda conhecida como ‘Teddy bear’.”

O que o preocupava era que os ursinhos de pelúcia não estavam incutindo nas meninas o que eram consideradas as normas de seu gênero, retirando os instintos maternais que ele acreditava que as bonecas ajudavam a desenvolver nelas.

Isso aceleraria a “extinção” dos americanos.

“Nunca vi nada mais nojento do que esse espetáculo de uma menina acariciando e até beijando aqueles pseudoanimais”, escreveria o reverendo Esper pouco depois.

Cartoon de Clifford Berryman, publicado no Washington Post, 1902, e um dos primeiros ursos de Benjamin Michton, exibido no Museu Smithsonian de História Natural


Mas por que as palavras de um padre de uma pequena cidade americana importavam?

Porque a notícia local se espalhou; o alerta do sermão chegou até aos jornais mais respeitados, como se fosse um motivo legítimo de alarme.

Em meio ao pânico moral, alguns meios de comunicação zombaram do absurdo, e outros, como o News Palladium, questionaram o silêncio de Roosevelt diante do ataque ao brinquedo homônimo.

Provavelmente, ele estava ocupado com assuntos mais importantes, mas a pergunta era válida. Afinal, o ursinho de pelúcia estava sendo acusado de promover algo que ele abominava: “suicídio racial”.

Esse conceito nasceu do movimento eugênico e indicava que uma raça se suicidava quando não se reproduzia o suficiente, de modo que sua taxa de mortalidade se aproximava da taxa de natalidade.

E a “raça” que preocupava quem governava os Estados Unidos entre 1901 e 1909 era a americana branca ou a “americana de cepa velha”, isto é, descendente dos primeiros colonizadores.

Durante quase três décadas, Roosevelt alertou repetidamente sobre o perigo, de forma mais severa, em discursos e cartas, como uma de 1902:

“O homem ou mulher que deliberadamente evita o casamento e tem um coração tão frio que não conhece a paixão e um cérebro tão superficial e egoísta que não gosta de ter filhos, é de fato um criminoso contra a raça e deveria ser objeto de desprezo e aversão por parte de todas as pessoas sãs.”

Mas quando os repórteres pediram a opinião dele sobre os comentários do reverendo Esper, ele riu.

Ele sinalizou que os havia lido com interesse, mas não tinha nada a dizer a favor ou contra os ursinhos de pelúcia.

BBC News Brasil


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