domingo, 19 de janeiro de 2025

 


CIDADE-LIMBO

Uma foto-descrição de Songa em inícios de 2007.

Depois, reclamam da cidade não ter progredido.

Quanta coisa mudou, nos últimos 17 anos, hein?

         São Gonçalo dos Campos, onde vivo e onde espero enterrar meus ossos, é uma cidade-limbo. Um muito-pouco das delícias do paraíso e um pouco-muito da infernal vida de um lugar no qual quase todos são meio aparentados e se conhecem. Os moradores, em sua maioria, pertencem à base da pirâmide social e a mão de obra formalmente empregada é feminina. É grande a massa de aposentados. Os homens locais, na maior parte formados pela universidade-vida, são pedreiros, carpinteiros, motoristas, eletricistas, lavradores, ajudantes diversos, que vivem de vender suas diárias, quando encontram compradores.

O desemprego é a maior doença da comunidade. O alcoolismo, a segunda. Uma população estável há 30 anos revela o êxodo (jovens de famílias de recursos e adultos em busca de trabalho) que anula o crescimento demográfico, mais expressivo nas classes menos abastadas. A política, por um cacoete histórico de boa parte das cidades do interior da Bahia, ainda é dominada por pessoas que elegem a si ou a prepostos. A vereança é vista como forma de se alcançar melhoria de vida, posto serem os 2,5 mil mensais de proventos, uma remuneração muito acima da média da cidade.

Em termos de infraestrutura temos nada de tudo e tudo de nada. Não temos enchentes, não temos encostas, não temos ladeiras, não temos temperaturas extremas, não temos grandes períodos sem chuvas. Dispomos de uma razoável infraestrutura urbana. Uma pousada que não tem hóspedes, um clube social que fechou as portas há vários anos, uma biblioteca que (quase) não tem livros, um cineteatro que não tem atividades-fim, um centro de abastecimento que pouco abastece. Não temos nenhuma extensão da Universidade. Já tivemos três casas de saúde o que, convenhamos, era um exagero para nosso porte. Hoje temos um só hospital. Agora se inaugurou, diga-se, muito bonito, um centro de artesanatos. Que não tem público. Ah! Sim! Também temos um lixão, a céu aberto, praticamente dentro da cidade. Hora dessas irei publicar fotos na internet.

Praças não faltam. A cobertura vegetal é invejável. E, como em todo limbo, a silhueta urbana é longilínea e plana.

Ruas prosaicas tremem com o andar de carroças, com negros motorneiros balançando relhos, numa misturança que cheira a cavalos suados e barulhos de ferraduras, duras como o ferro, a galopes sobre pedras gastas pelo tempo.

Oitizeiros aos passeios, cansados das mesmas paisagens, querendo se transformar em pássaros verdes, espalmando asas sobre as telhas vãs das casas que, como xifópagas, nasceram coladas umas às outras.

Gentes dormentes e silentes, num silêncio de madrugadas, penduradas nas janelas, a desnudar pensamentos alheios, quase fazendo corar passantes.

Casarões seculares calados, alheios, estáticos como em fotos, guardando pedaços e recortes de vidas passadas.

Um detalhe: aqui não se veem casas de aluguel. Quase todos têm seu canto próprio, sua casinha por simples que seja. Nos últimos tempos, percebe-se acentuada melhoria do comércio de alimentos e de materiais de construção. Reflexos do aumento da renda da base da pirâmide e dos financiamentos para aposentados. Intervenções urbanas em ruas, praças e no trânsito intentam dar ares de modernidade à cidade. Divulga-se a intenção de se construir um viaduto. Temo sejamos, amanhã ou depois, rotulados como “tabaréus chiques”.

O fato é que ainda não somos urbanoides, embora já tenhamos deixado de ser sertanejos. É o velho lugar, onde habitam os pagãos, do qual falei ao início. Bem, mas entre o inferno e o paraíso, ainda acho melhor, aqui viver-se. Pelo Ao menos enquanto o Papa não revogar a existência do limbo e onde, por ora, ninguém franze o cenho, nem torce o nariz para a fumaça dos charutos.

 

               Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual

Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,

participa do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos.

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