Muito além de transformar a rotina
da família, o nascimento de uma criança é capaz de mudar prioridades,
crenças e o estilo de vida de mulheres renascidas com a maternidade.
Entre
tantas mudanças, há quem tenha encontrado uma nova fé, descoberto
habilidades ou apostado em uma trajetória profissional diferente, seja
para ter mais tempo com os filhos ou para encontrar sentido em sua
carreira.
Mas o que essas transformações vividas pelas
mulheres-mães podem nos ensinar sobre o "grande puerpério" que estamos
vivendo nessa pandemia?
Isolamento, solidão, medo do desconhecido,
incertezas. Acumulam-se as tarefas, funções, e de repente estamos
perdidos em nossos novos papéis. Parece não haver futuro possível a
planejar. Um dia de cada vez. Uma hora de cada vez.
Elas já
passaram por isso. Três mães que, do dia para a noite, encontraram-se
com a necessidade de se reinventar contam agora como os desafios do
pós-parto as fizeram mudar de vida e encarar o isolamento social de um
jeito mais leve.
"Cabidas todas as ressalvas da minha preocupação com o
momento político do país e com a saúde pública, sinto que esse momento é
quase um alívio. O mundo inteiro está mais lento, em um ritmo puerperal
de recolhimento. Como se eu não fosse mais obrigada a corresponder a um
compasso frenético. Não temos mais pressa para as refeições, horário
para sair de casa. É quase um presente", conta Thais Duarte Jacobsen.
Thais
trabalhou por 13 anos como chefe de planejamento em uma agência de
publicidade e viu a vida mudar radicalmente com a chegada do filho Noah,
hoje com 5 anos. Nesse percurso, mudou de nome e passou a se chamar
Tanuka Nalini. Descobriu-se perfumista botânica, aromaterapeuta
integrativa, cosmetóloga botânica e benzedeira.
"Trabalhava por
10, 12 horas por dia, em uma rotina exaustiva. Eu sinto que a
maternidade foi um convite. Mais do que isso, um portal que me convidou a
olhar a vida e a mim mesma sob outra perspectiva. A maternidade nos
convida (convoca às vezes) a ficar de frente com um ajuste interno.
Alinhar princípios, deixar personagens internos para ser alguém que tem
mais a ver com nosso ser inato", diz.
Mas a jornada de Thais,
assim como da maioria das mulheres em suas transformações, não foi
fácil. Ao pedir demissão, abriu mão da estabilidade financeira, e viu a
decisão impulsionar outras mudanças. Ela se separou quando o filho tinha
1 ano e 10 meses.
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'Tudo que experimentei foi muito importante. As dores, as mudanças construíram quem eu sou hoje', diz Thais |
Com isso, do bairro do Morumbi, em São Paulo, Thais e
o filho se mudaram para um sítio na área rural da cidade de Cotia, na
região metropolitana da capital paulista.
"Não foi fácil. De
frente para aquele bebê, sem trabalhar, eu me vi mais vulnerável e, ao
mesmo tempo, mais forte do que jamais estive. Eu não tinha emprego, não
tinha dinheiro, estava sozinha com um bebê e naquele momento decidi: ou
faria tudo que acreditava que era preciso, ou toda a mudança não faria
sentido."
No começo da nova trajetória, ela trabalhou com
comunicação voltada ao parto, mas ainda não parecia ter encontrado sua
verdadeira vocação. Foi depois de uma viagem para a Índia que veio a
mudança de nome e a criação de sua linha de produtos terapêuticos
naturais.
"Tudo que experimentei foi muito importante. As dores,
as mudanças construíram quem eu sou hoje. A segunda gestação, que estou
vivendo agora, vem com a clareza dos meus medos internos e uma
possibilidade de ressignificar o conceito de estrutura. Hoje, tenho
menos conforto financeiro do que em minha primeira gravidez, numa casa
mais simples, mas muito mais conexão com a estabilidade que realmente
importa, a interna."
Tanta transformação culminou com um momento
de tranquilidade em meio à pandemia. Thais sentiu o impacto nos
negócios, claro, e teve que adaptar as contas de casa. Mas o saldo, a
seu ver, pode ser positivo.
"A reflexão da quarentena pode ser um
presente: a conclusão de que não dá para ser supermulher. Isso não
existe. É impossível ser uma ótima mãe, uma ótima empresária, uma ótima
terapeuta. Isso nos massacra. Esse período tem me ajudado a achar um
equilíbrio, abrir espaço para receber ajuda e diminuir a cobrança comigo
mesma", diz.
"No começo, sentia culpa. Via mães colegas
preocupadas com as atividades para os filhos, e me sentia mal por querer
apenas deixar fluir meu momento com o Noah. Com o tempo, acolhi esse
meu desejo de apenas estreitar meus laços com ele e tem sido lindo viver
isso."
Prontas para muitos recomeços
Em A Maternidade e o Encontro com a Própria Sombra,
a autora Laura Gutman fala da maternidade como um chamado a "voltar
para casa", um olhar sobre a transformação vivida por tantas mulheres ao
se tornarem mães.
"Transformar-se em mãe é um salto brusco em
direção à própria feminilidade. Quase sem nos darmos conta, nos
alinhamos com a Terra, com as oferendas e com as colheitas. Embora
muitas mulheres urbanas já nem reconheçam as estações do ano, não
cheirem o pólen das flores nem tenham a possibilidade de tocar o
orvalho, a natureza vivente de seus filhos lhes recorda que são a Terra,
são o alimento e são os ciclos vitais", escreve a autora.
Juliana
Morena, mãe de dois, era gerente de produtos de uma editora. Deixou o
emprego para empreender quando começou a tentar engravidar do seu
primeiro filho, com o intuito de ter mais tempo para a maternidade.
Três
anos depois, já grávida da segunda filha, a experiência a levou a
desistir do primeiro negócio — uma loja de decoração — para investir no
seu trabalho atual: a criação e manipulação de cosméticos naturais.
"Na primeira tentativa de empreender, precisei
terceirizar muitas demandas. Meu bebê ficava comigo 24 horas por dia.
Foi intenso e tenso. Tinha dias que eu chorava por falta de controle e
um cansaço brutal. Era aflitivo administrar uma empresa com aquele bebê
sempre pendurado no meu peito. Meu raciocínio ficou lento. O choro dele
muitas vezes acontecia no momento daquela venda bacana que provavelmente
salvaria o mês. Nessa terceirização, falta de idas à loja, a qualidade
do atendimento caiu", lembra.
O nascimento da filha Ceci foi a
gota d'água para a decisão de fechar a loja. E o encontro com o novo
trabalho foi natural, depois de um olhar para seus próprios gostos e
necessidades.
"Eu sempre fui 'natureba'. Não gostava dos
cosméticos convencionais, porque achava os resultados ilusórios, além da
alta produção de lixo. Até que na gestação tive uma alergia ao
desodorante convencional, e uma prima que mora nos EUA me ensinou como
ela fazia seu próprio desodorante. Funcionou, amigos começaram a pedir
e, quando vi, estava em uma produção intensa."
Dos óleos e
cremes, Juliana foi se especializando e hoje produz até bálsamos
curativos e descongestionantes, tudo em casa, junto com os filhos.
"Com
esse trabalho voltei a me orgulhar do que faço. Amo ser quem sou hoje,
inadequada aos olhos convencionais do mercado, e até um pouco estranha
para algumas pessoas, mas que ama essa forma de vida, esse universo
infinito de possibilidades na criação e desenvolvimento de produtos
naturais. Aprendi a amar a pele cheia de história, a barriga com
diástase. Hoje vejo com carinho tudo que passei, e sinto que estou tendo
certa facilidade de lidar com a situação do isolamento. Já vivenciei
duas vezes - em meus dois puerpérios - esse exercício de me adaptar ao
novo, encarar desafios profissionais, incertezas... Como mãe a gente se
acostuma a lidar com as adversidades, com o desconhecido, com novas
perspectivas", conta.
Um chamado para desacelerar
Graduada
em biologia, Gisele Leal também renasceu com a maternidade. Iniciou sua
vida profissional trabalhando como secretária e fez carreira em uma
multinacional da indústria de bebidas e embalagens para alimentos.
Registrada, com um ótimo salário e muitos benefícios. Vivia dividida
entre pontes aéreas, viagens nacionais e internacionais e a família, até
ficar grávida da terceira filha.
A experiência do parto natural
"virou a chave" para Gisele, como ela mesma conta. "Pari após duas
cesáreas anteriores, com diabetes gestacional, quase 100 kg, dois dias
de bolsa rota e após passar por 21 obstetras. Isso mudou completamente
minha vida", lembra.
"Como bióloga e mãe, vi que estar na indústria, colocando plástico no mundo não fazia sentido para mim. E, então, pirei."
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A bióloga Gisele hoje trabalha como doula |
Na mesma semana em que pediu demissão do emprego
estável, Gisele começou a formação como doula, profissional que oferece
apoio físico e emocional a outras mulheres durante a gestação, parto e
pós-parto.
"O início não foi fácil, foi muito difícil. Fiquei sem
plano de saúde, tirei as crianças da escola particular. Meu marido
também era autônomo, então, passamos muita dificuldade. Mas deu certo.
Hoje, estou muito feliz e não me vejo de jeito nenhum voltando para um
regime CLT."
Após dez anos trabalhando como doula, Gisele — hoje
mãe de quatro — se formou parteira obstetriz pela Universidade de São
Paulo e passou a atuar também na formação de outras doulas, em Campinas,
no interior paulista.
"Acredito que a maior transformação
trazida pela maternidade, além da carreira, foi entender o quão poderoso
é estar entre mulheres, ser dona de minhas próprias decisões e da minha
própria carreira, e ajudar outras mulheres a construir essa autonomia,
ainda que seja no parto, que é uma parte da vida".
Maternidade e empreendedorismo
O
mais recente estudo da FGV sobre o assunto, de 2016, aponta que 24
meses depois do início da licença-maternidade, quase metade das mulheres
estão fora do mercado de trabalho. E seja pela falta de acolhimento no
mercado tradicional ou porque as mulheres deixam de ver sentido no
trabalho que executavam, o empreendedorismo se torna opção para muitas.
As
mulheres são maioria (52%) à frente dos negócios com menos de 42 meses
de existência, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Rede
Mulher Empreendedora.
"Historicamente, percebemos que houve uma
ligação muito forte entre esse movimento e a maternidade. No perfil
médio, a mulher não se prepara para empreender, ela acaba empreendendo
em áreas que já conhecia ou que requerem menos capital. Abre uma
consultoria em uma área em que já trabalhava, por exemplo, ou aposta em
segmentos como alimentos, beleza, conforto", diz Adriele Costa, analista
do Instituto.
As mães empreendedoras são muitas e caminham
juntas. Só na Rede Maternativa, a maior comunidade virtual de mães
reunidas para tratar de questões ligadas ao trabalho, são 25 mil
mulheres.
"No começo, o perfil era quase 100% focado em
empreendedoras. Hoje, temos muitas mães que trabalham formalmente no
mercado. Em comum elas compartilham as dores e o desafio de conciliar
maternidade, tempo e trabalho", explica Vivian Abukater, uma das
fundadoras do grupo.
O Maternativa nasceu no Facebook, em 2015,
inicialmente para discutir entre amigas os dilemas do trabalho
pós-maternidade. A iniciativa, no entanto, viralizou e em um mês já eram
mais de 600 mulheres.
"A chegada dos filhos muda tudo. A mulher
passa por uma transformação e toda transformação se inicia com um pouco
de caos. É claro que tudo isso impacta o trabalho, porque o trabalho faz
parte da vida. Se de um lado essa mulher passa a ter mais sono, por
exemplo, do outro ela ganha novas e importantes habilidades: está mais
atenta, aprende a gerenciar melhor seu tempo, a colocar foco no que
realmente traz resultado", diz Vivian.(BBC News Brasil)
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