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Quando denúncia de abuso é vista com desprezo e como 'culpa' da mulher, ela é vítima duas vezes, diz advogada |
Qual a influência da legislação
brasileira na criação de um ambiente em que 65% dos ouvidos em uma
pesquisa do Ipea acreditam que mulheres com roupas curtas merecem ser
atacadas?
Para especialistas ouvidas pela BBC Brasil, o
problema não é a lei em si, mas sim sua interpretação e aplicação, que
muitas vezes acabam fazendo mulheres que sofrem abusos sexuais serem
vítimas duas vezes.
Para a advogada Ana Gabriela Mendes
Braga, pesquisadora do sistema de justiça criminal e professora da
Faculdade de Direito da Unesp, o problema é que a lei é mal interpretada
nas mais diversas instâncias, desde o delegado que recebe a denúncia
até na sentença do juiz.
Isso passa por policiais muitas vezes
menosprezarem denúncias de mulheres vestindo roupas curtas, ou não
levarem em consideração a humilhação (tanto no momento do abuso quanto
da denúncia) vivida pela vítima; ou por parte da própria sociedade achar
que, se ela não era "recatada", está sujeita a sofrer violência verbal
ou física.
Segundo a pesquisadora, uma interpretação
enviesada pode deixar a vítima desprotegida, seja no momento em que ela
faz a denúncia e é mal recebida pelo policial ou quando seu caso é visto
pelo delegado com desprezo e não é investigado - ou até mesmo na outra
ponta do processo, quando a denúncia chega nas mãos de um juiz.
"Há previsão legal específica para crimes
sexuais, mas a leitura que se faz dessas leis podem 'revitimizar' a
mulher que sofreu abuso e enfraquecer sua proteção", diz.
"O que está em jogo é o papel da mulher e, no
caso, de vítima. Se ela rompe com o padrão esperado, ou seja, uma
conduta recatada e uma moral sexual reprimida, muitas vezes ela não tem
mais uma proteção legítima."
Profissionais preparados
Segundo ela, um dos problemas é que as leis
foram criadas por homens, não levando em conta as especifidades de
gênero. "Para dar queixa de um crime sexual, por exemplo, a demanda dela
não é só criminal, é também psicológica. Hoje, esse espaço de escuta
existe, como as varas específicas de violência domésticas, mas ainda é
insuficiente."
Além disso, Mendes Braga afirma que a criação de
mecanismos de maior proteção, como essas varas e as delegacias
especiais para mulheres, é louvável, mas insuficiente se as pessoas
envolvidas não estiverem preparadas.
"Há delegacias para mulheres em que a
sensibilidade de delegada e as guardas não difere da dos funcionários de
delegacias comuns."
Punição
Na semana passada, um funcionário do aeroporto
de Belém foi detido por filmar mulheres por baixo de seus vestidos. Ele
pagou uma multa e não ficou preso, já que sua conduta é considerada uma
contravenção (delito leve) e não um crime (delito grave).
Esse caso, juntamente com outros semelhantes
ocorridos no metrô de São Paulo e denunciados nas últimas semanas,
suscitaram debates sobre se as penas deveriam ser mais severas.
Para a pesquisadora da Unesp, mais punição não
reduz o crime, porém colabora para criar um clima de justiça, mais
propício para as denúncias. "Mas não é a pena que impacta, é a certeza
da punição."
Já a historiadora Denise Bernuzzi, professora da
PUC e especialista em relações entre o corpo e a cultura contemporânea,
afirma que a impunidade de criminosos sexuais deteriora o processo
democrático.
Segundo ela, em uma democracia, a mentalidade
machista vai naturalmente sendo reduzida e dando lugar a um pensamento
igualitário. Denise afirma que aqui esse processo, que já é lentíssimo,
ainda engatinha, visto que vivemos em uma democracia há pouco tempo.
"Mas se houvesse uma punição mais efetiva,
aliada à educação, isso certamente aceleraria essa mudança. No entanto, o
que vem ocorrendo no Brasil, com a falta de vigilância da lei, acaba
emperrando ainda mais o processo de ser ver uma mulher como igual", diz
"O que vemos ainda é uma sociedade senhorial,
com 'sinhô e sinhazinha'. Não somos só isso, mas também somos isso, sim.
De um lado, um 'sinhô' que acha normal passar a mão em uma mulher,
porque ela é dele. De outro, uma 'sinhazinha', que com um pouco de poder
maltrata a empregada ou critica a vítima de estupro por usar roupas
curtas."
Soluções
Mendes Braga, a professora de direito, diz que
um bom ponto de partida é ter matérias de tipificação de gênero nas
faculdades de Direito e nas escolas da Defensoria Pública, Ministério
Público e Magistratura.
"Hoje há grupos de estudo do feminismo nas
universidades, mas as essa discussão ainda não chegou no currículo
formal, algo que certamente ajudaria na melhor interpretação da lei para
as mulheres."
Para a historiadora Bernuzzi, é preciso praticar
um treino democrático, seja na aplicação de leis, na relação com o
governo ou com o marido. "Para se interiorizar que todos são realmente
iguais do ponto de vista do Direito." (BBC Brasil)
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