Garantir o acesso à água de qualidade a todos os brasileiros é um dos
principais desafios para os próximos gestores do país. Culturalmente
tratado como um bem infinito, a água é um dos recursos naturais que mais
tem dado sinais de que não subsistirá por muito tempo às intervenções
humanas no meio ambiente e às mudanças do clima.
Em várias regiões do país, já são sentidos diferentes impactos, como
escassez, desaparecimento de nascentes e rios, aumento da poluição da
água. Os especialistas alertam que os problemas podem se agravar se não
forem tomadas medidas urgentes e se a sociedade não mudar sua percepção e
comportamento em relação aos recursos naturais.
O Brasil tem 12 regiões hidrográficas que passam por diferentes
desafios para manter sua disponibilidade e qualidade hídrica. Mapeamento
do Ministério do Meio Ambiente mostra que, nas bacias que abrangem a
Região Norte, o impacto vem principalmente da expansão da geração de
energia hidrelétrica. Na Região Centro-Oeste, é a expansão da fronteira
agrícola que mais desafia a conservação dos recursos hídricos. As
regiões Sul e Nordeste enfrentam déficit hídrico e a Região Sudeste
apresenta também o problema da poluição hídrica.
Em nível global, o desafio é conter o aumento da temperatura do
clima, fator que gera ondas de calor e extremos de seca que afetam a
disponibilidade de água. O relatório especial do Painel
Intergovernamental das Mudanças Climáticas, das Nações Unidas, divulgado
recentemente, mostra que, se a temperatura global subir acima de 1,5°C,
em todo o mundo mais de 350 milhões de pessoas ficarão expostas até
2050 a períodos severos de seca.
Brasil: o mito da abundância
“As gerações mais antigas foram criadas com o mito do país riquíssimo
em água, que água seria um problema crônico, histórico, só no Nordeste,
no semiárido. Obviamente, desde 2013, na primeira crise que a gente
teve, o apagão, que na verdade foi um “secão”, porque não foi resultado
só de uma questão elétrica, ficou claro que o Sudeste e o Centro-Oeste
têm problemas concretos, intensificados nos últimos dois anos, de
disponibilidade de água”, destacou Ricardo Novaes, especialista em
Recursos Hídricos do WWF-Brasil.
O pesquisador explica que a crise resulta também da falta de adequada
gestão do uso da água, sobretudo em períodos de estiagem - tendência
que deve se manter tendo em vista o baixo índice de precipitação
registrado no início desta primavera.
“Temos indicativos de que há um risco de, no próximo verão, ou talvez
no outro ano, termos novamente um quadro muito complicado em São Paulo,
talvez em todo o Sudeste. Os reservatórios estão com níveis abaixo do
que estavam há dois anos, antes da crise de 2014 e 15”, afirmou.
Depois da grave crise hídrica de 2015 que afetou a população de São
Paulo, os moradores do Distrito Federal (DF) também passaram pelo
primeiro racionamento nos últimos 30 anos devido à falta de água nas
principais bacias que abastecem a região. Por mais de um ano, os
moradores da capital do país tiveram que se adaptar a um rodízio de dias
sem água devido ao esgotamento dos reservatórios das principais bacias
que abastecem a cidade.
Na área rural, o governo do DF decretou estado de emergência
agrícola. Na época, foi estimado um prejuízo de R$ 116 milhões com a
redução de 70% na produção de milho, segundo estudo da Secretaria do
Meio Ambiente do DF.
Berço de águas escassas
Os especialistas apontam que uma das principais causas para a crise
hídrica é o uso inadequado do solo. No Centro-Oeste, por exemplo, estão
concentradas as nascentes de rios importantes do país, devido a sua
localização no Planalto Central. Conhecida como berço das águas, a
região tem vegetação de Cerrado, bioma que ocupa mais de 20% do
território e atualmente é um dos principais pontos de expansão da
agropecuária, atividade que usa cerca de 70% da água consumida no país.
Como consequência do avanço da fronteira agrícola, o Cerrado já tem
praticamente metade de sua área totalmente devastada. Os efeitos da
ausência da vegetação nativa para proteger o solo já são percebidos
principalmente na diminuição da vazão dos rios e na escassez de água
para abastecimento urbano.

“A mudança do uso da terra tem alterado demais o ciclo da água e faz
com que a gente tenha menos água nos rios, os rios muito assoreados e
menor disponibilidade de chuva. Então, o ciclo da água está num pequeno
colapso”, afirmou Isabel.
Projeções do Painel Brasileiro de Mudança Climática (PBMC) apontam que nas próximas três décadas o bioma do Cerrado poderá ter aumento de 1°C na temperatura superficial com diminuição percentual entre 10% a 20% da chuva.
“A contribuição do Cerrado para as bacias hidrográficas importantes
do Brasil, como São Francisco, Tocantins, por exemplo, vai diminuir
muito, se esse processo de desmatamento continuar nesse nível”,
completou.
A especialista lembra ainda que o desmatamento do Cerrado não afeta
somente as comunidades locais, que já relatam dificuldades para plantar,
mas também outras regiões. “Os biomas e ecossistemas brasileiros estão
todos interligados. O desmatamento do Cerrado afeta a chuva que cai em
São Paulo, o desmatamento na Amazônia afeta a chuva que cai aqui no
Cerrado”, explica.
Outros desafios
O desafio de garantir o funcionamento do ciclo hidrológico
natural também tem impacto na manutenção dos aquíferos subterrâneos. Os
pesquisadores lamentam que o assunto não tenha destaque no debate
público e na agenda eleitoral e alertam que, para evitar a próxima
crise, é necessário criar um modelo de gestão das águas subterrâneas.
Outro problema que leva à escassez de água é a estrutura precária de
saneamento. Considerando as metas estabelecidas pelos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável da Nações Unidas, do qual o Brasil é
signatário, uma das principais preocupações com relação à água é
garantir a universalização do saneamento.
Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), mais de 35 milhões de
pessoas ainda não têm acesso à água tratada no Brasil e o sistema de
abastecimento de água potável gera 37% de perdas, em média. A falta de
tratamento do esgoto compromete mais de 110 mil quilômetros dos rios
brasileiros que recebem os dejetos.
A agência estima que, para regularizar a situação, seriam necessários
pelo menos R$ 150 bilhões de investimentos em coleta e tratamento de
esgotos até 2035.
“Um objetivo absolutamente fundamental, mas que vai exigir um nível
de investimento, comprometimento de agentes públicos e desenvolvimento
de tecnologias - e não estamos vendo energia sendo colocada pra atingir
isso. E não adianta você investir em saneamento e ter de buscar água cada vez mais longe, por causa do desmatamento”, criticou Novaes.
Um problema de percepção
Doutor em ecologia e autor de vários livros sobre educação ambiental,
Genebaldo Freire destaca que todos estes problemas só serão resolvidos
quando os governos e sociedade mudarem sua percepção sobre a importância
dos recursos naturais para a sobrevivência humana.
“Nós estamos vivendo uma falha de percepção e temos algumas
evidências objetivas que comprovam isso: nós dependemos de água pra tudo
e qual é o nosso comportamento? Desperdício, consumismo, poluição e
desmatamento, e isso tudo numa pressa danada, com uma população que
cresce em 75 milhões de pessoas a cada ano no mundo”, constata.
Segundo o professor, não há lugar seguro no planeta e, além da falta
de percepção, há uma absoluta falta de governança na gestão da água. O
escritor também critica a indiferença e incapacidade da classe política
em lidar com o tema da educação ambiental.
“A história dos problemas ambientais passa por essa falha de
percepção por várias razões: conveniência, ignorância ou apatia. Todo o
processo de educação ambiental hoje tem de estar obrigatoriamente centrado na ampliação da percepção, senão não vai mudar coisa alguma”, avalia Freire.
O professor ressalta que vários colapsos já estão ocorrendo devido à
grande pressão da população mundial de sete bilhões de pessoas sobre os
sistemas naturais, que estão assumindo “configurações diferentes das que
nós estamos acostumados para neutralizar nossas ações”.
Para evitar o agravamento da situação, é necessária uma evolução do
ponto de visto ético e moral e não somente científico e tecnológico. “A
mudança do clima é a maior falha de mercado da espécie humana, porque é
algo em que a inteligência estratégica de sobrevivência do ser humano
não funcionou e continua errando de forma insistente. E qual a
consequência disso? E você ter o
crescimento de conflitos que já estão estabelecidos, como disputa por
água, energia e espaço, aumento de refugiados”, comenta. (Agência Brasil)
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