
Não é só no Brasil destes dias que o termo "fascismo" voltou a permear o debate político.
Em países europeus como Hungria, Polônia, Áustria e Itália, berço do
fenômeno, a ascensão de políticos populistas de extrema direita - com
pendores nacionalistas e xenófobos - tem suscitado calorosas discussões
sobre a conveniência ou não de se usar a palavra.
O historiador
Emilio Gentile é considerado na Itália o maior especialista vivo sobre o
assunto. Autor de inúmeros livros sobre o período fascista, muitos
deles adotados nas escolas italianas, ele afirma que utilizar o termo,
como se tornou comum recentemente, é uma forma de confundir as ideias e
não observar um fenômeno que, na verdade, tem a ver com a crise da
democracia.
"A democracia não está em risco por causa de um fascismo que não
existe. Hoje, o perigo é a democracia que se suicida", disse à BBC News
Brasil. "O que há de novo, em todo o mundo, é um novo poder de direita
nacionalista e xenófobo. É o que Orbán (Viktor Orbán, primeiro-ministro
da Hungria, um dos expoentes desse movimento na Europa) classificou de
política nacionalista democrática iliberal."
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Emilio Gentile |
De acordo com
Gentile, há muitos movimentos políticos - na Europa e em outros lugares
do mundo - que se referem à experiência fascista e utilizam seus
símbolos, mas de uma maneira muito "idealizada e imaginária".
O
fascismo foi criado por Benito Mussolini - um ex-socialista - há quase
cem anos. Originário da palavra latina "fascio littorio", um conjunto de
galhos amarrados a um machado, símbolo do poder de punição dos
magistrados na Roma Antiga, o experimento nasceu oficialmente em 23 de
março de 1919, quando Mussolini fundou em Milão o grupo "Fasci di
Combattimento", que reunia ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial
(1914-18).
Com a Itália imersa no caos - à beira de uma guerra civil, com crise
política, econômica e social, num momento em que o poder fugiu do
controle do Estado -, e à sombra da revolução russa de 1917 (temia-se
que o comunismo chegasse também no país), o grupo fundado por Mussolini
cresceu rapidamente.
Ainda em 1919, ocorreram ataques de brigadas fascistas - que depois
se tornariam efetivamente milícias paramilitares - contra políticos de
esquerda, judeus, homossexuais e órgãos da imprensa. Eles ficariam
conhecidos como os "camisas negras".
No final de 1921, nasceu o
Partido Nacional Fascista (PNF), cujo símbolo era exatamente o "fascio
littorio". Menos de um ano depois, Mussolini assume o poder. Ele
fortaleceu sua influência na Itália angariando o apoio de industriais,
empresários e do Vaticano, e tornou-se referência para regimes
autoritários mundo afora - Francisco Franco na Espanha, António Salazar
em Portugal e, sobretudo, Adolf Hitler na Alemanha (que por muito tempo
manteve um busto do Duce italiano em seu escritório) tiveram em
Mussolini e no seu regime uma grande fonte de inspiração.
Regime
totalitário baseado num partido único, a característica fundamental do
fascismo foi a militarização da política, que era tratada como uma
experiência de guerra: além do projeto de expansão imperial, com a
supremacia fascista imposta no Estado e na sociedade, o regime tratava
os adversários como inimigos que deveriam ser eliminados. No mês
passado, a Itália lembrou os 80 anos da chamada lei racial, aprovada
contra os judeus e que estava em consonância ao regime nazista de
Hitler.
"O fascismo sempre negou a soberania popular, enquanto o
nacionalismo populista de hoje reivindica o sucesso eleitoral. Esse
políticos de agora se dizem representantes do povo, pois foram eleitos
pela maioria. Isso o fascismo nunca fez", comenta Emilio Gentile.
Raízes fascistas
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Domenico de Masi |
Para
o sociólogo italiano Domenico de Masi, que conhece o Brasil há muitos
anos, se não é possível falar num fascismo histórico como o implementado
na Itália no século passado, não há dúvidas, por outro lado, de que
Jair Bolsonaro (PSL) é um político de inspiração fascista - o candidato à
Presidência disse recentemente num comício no Acre em "metralhar a
petralhada". A eliminação física de adversários era exatamente uma das
características do regime de Mussolini.
"Ele tem inspiração fascista no que diz respeito à relação do Estado
com a economia, entre o poder civil e militar, política e religião. E
com base num conceito de autoritarismo, acha que pode resolver problemas
complexos com receitas fáceis", diz De Masi.
O sociólogo vê com
inquietação a ascensão de governos e políticos com raízes "claramente
fascistas". "Bolsonaro é como Salvini (Matteo Salvini, político de
direita e vice-premiê italiano hoje). Os dois têm uma visão autoritária
da sociedade. Brasil e Itália são sociedades muito distintas, mas vejo
os dois muito parecidos", completou.
Salvini, aliado de Steve
Bannon, ex-estrategista de Donald Trump que já se reuniu com um dos
filhos de Bolsonaro, declarou recentemente no Twitter torcer pela
eleição do ex-capitão no Brasil.
Domenico de Masi ressalta que,
enquanto na Europa o que alimenta esse tipo de discurso é a imigração (e
que tem, na Itália, o apoio das classes média e média-baixa), no Brasil
o fenômeno é estimulado pelo ódio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva e ao Partido dos Trabalhadores. "No caso brasileiro, o cidadão
pobre do Nordeste é mais inteligente quanto ao perigo de Bolsonaro do
que os ricos de São Paulo, que apoiam o candidato".
Como o colega
Emilio Gentile, o historiador Eugenio di Rienzo, professor de História
Contemporânea da Universidade Sapienza, em Roma, afirma que o fascismo é
um regime que nasceu e morreu no século passado - em 1945, quando
Mussolini foi assassinado em Milão.
"Não se pode fazer uma
analogia entre aquele fenômeno e outro. O fascismo não se reproduz mais,
é preciso cuidado com o uso da palavra, pois acaba provocando
desinformação", disse. "Um racista não é sempre um fascista. O governo
de (Recep Tayyip) Erdogan na Turquia é autoritário, mas não fascista."
Di Rienzo reconhece que há muitos nostálgicos do fascismo na Itália,
assim como do nazismo na Alemanha, mas para ele o processo atual (na
Europa e nos Estados Unidos de Trump) não é uma "repetição do passado":
"Há algumas semelhanças, mas os processos são muito diferentes. A
analogia, muitas vezes, tem o propósito de propaganda".
Emilio
Gentile concorda. "Na verdade, faz-se propaganda de um fascismo que
parece eterno, mas ao menos na Europa é um fenômeno novo que se
relaciona à crise da democracia, ao medo da globalização e dos
movimentos imigratórios que poderiam sufocar a coletividade nacional.
Mexe com a imaginação das pessoas, mas não se trata de um perigo real."
Gentile
lembra que o sucesso de Bolsonaro no Brasil tem a ver com uma tradição
latino-americana da participação dos militares na política, vistos como
atores da "ordem e da competência", o que não acontece nos países
europeus.
Madeleine Albright, ex-secretária de Estado dos Estados
Unidos, país onde chegou nos anos 1940 após sua família fugir do
nazi-fascismo na Europa, publicou recentemente o livro Fascismo: Um
Alerta, em que discute o tema e as formas atuais de transmutação do que
ela chama de "vírus do autoritarismo". "Definir fascismo é difícil.
Primeiro, não acho que fascismo seja uma ideologia. É um método, um
sistema", disse Albright recentemente numa entrevista.
O certo é
que o debate sobre o que é fascismo e em quais situações se deve
utilizar o conceito é tão antigo quanto o próprio regime.
Numa
coluna para o jornal inglês Tribune, em março de 1944, o escritor e
jornalista George Orwell escreveu - o artigo intitulava-se "O que é
fascismo?" - que todo aquele que usa indiscriminadamente a palavra
fascismo está agregando a ela um significado emocional. "Por fascismo,
eles estão se referindo, de maneira grosseira, a algo cruel,
inescrupuloso, arrogante, obscurantista."
Autor de livros
clássicos sobre o totalitarismo (como 1984 e A Revolução dos Bichos),
Orwell recomendava: "Tudo que se pode fazer no momento é usar a palavra
com certa medida de circunspeção e não, como usualmente se faz,
degradá-la ao nível de um palavrão".(BBCBrasil)
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