A empresária Margot Stinglwagner
acompanhava uma festa junina em uma pequena cidade no interior do
Maranhão, em 2012, quando ouviu falar pela primeira vez da tiquira. Tradição
em rodas de Bumba Meu Boi na região, a bebida quente fora oferecida aos
presentes em uma rodada paga pelo dono do bar em que ela estava.
Margot perguntou o que era e descobriu que se tratava de um
destilado à base de mandioca. Ficou intrigada. Carioca, filha de um
executivo do setor de bebidas, nunca ouvira falar do produto. Passada a
festa, foi pesquisar e ficou fascinada. As origens da aguardente
remontavam aos índios brasileiros. A produção era toda artesanal e
sobrevivia em poucas cidades do Estado do Maranhão.
Ninguém ainda
produzia industrialmente, apesar de já haver no Ministério da
Agricultura uma instrução normativa para isso. "Me dei conta de que
tinha algo original ali. A tiquira é que era a aguardente 100%
brasileira, não a cachaça. Porque a cana de açúcar veio de fora, com os
portugueses", conta a empresária. "Entrei numas de fazer."
Margot
foi estudar alambiqueria em Ituverava (MG), montou uma pequena fábrica
em Santo Amaro do Maranhão (MA) e, desde então, se tornou parte de um
movimento incipiente de industrialização e revalorização da tiquira, com
perspectivas iniciais promissoras.
A primeira marca a chegar ao mercado foi a
Timbotiba, do empresário e advogado José Moraes, em 2012. Depois veio a
Guaaja, lançada por Margot e seu filho, Robert, em 2015.
Agora,
em dezembro deste ano, um grupo de 23 produtores rurais da pequena
cidade de Urbano Santos (MA), reunidos em cooperativa, pretende lançar a
Guaribas, em homenagem ao nome do povoado onde vivem. Em paralelo, a
bebida vem ganhando estudos em universidades federais, como a do
Maranhão e a Universidade de Brasília, prêmios internacionais e espaço
em bares e restaurantes renomados de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Um dos reflexos do movimento da bebida é sua disseminação.
Para
provar a tiquira já não é necessário viajar ao Maranhão, onde é
encontrada facilmente em pequenos comércios da capital, São Luís, e de
cidades na região Nordeste do Estado. Bares e restaurantes do Rio de
Janeiro e de São Paulo, como o Guilhotina e o Nambu, passaram a servir a
Guaaja pura, ou em drinques. Outra marca, a Timbotiba, é vendida em
lojas de bebidas na internet.
A bebida, transparente na forma
natural e de sabor definido por Margot como algo entre a grapa e o poire
(liquor de pêra), também começa a ganhar destaque fora do Brasil com a
aposta da Guaaja em concursos internacionais.

Na edição búlgara do
Spirits Selection by Concours Mondial de Bruxelles, evento que é
itinerante, ficou com a prata na categoria Spirits. Em abril, a Guaaja
já havia levado medalha de ouro na edição brasileira do evento.
Nova imagem
Apesar
de recente e ainda restrita, a presença da bebida em salões
internacionais ajuda quebrar a imagem de aguardente barata e de baixa
qualidade que a tiquira ainda carrega.
É uma percepção que tem
razão de ser: a maior parte da produção ainda é feita de forma
artesanal, sem padronização de grau etílico e controle de qualidade.
Vendida
no atacado por R$ 10 o litro, em média, normalmente chega ao varejo via
atravessadores, em garrafas de um litro, com rótulos de design
genérico. Para piorar, muitos atravessadores adicionam corantes
proibidos pelo Ministério da Agricultura, que dão ao produto uma cor que
vai de azulada a arroxeada.
Leandro Santos Lima, o Leo, de 36
anos, é parte da extensa rede de produtores que abastecem esse varejo
genérico. Morador do povoado de Guaribas, na pequena cidade de Urbano
Santos (MA), ele segue um modelo de produção passado de geração em
geração que mudou pouco desde que os índios adaptaram seus métodos de
fermentação da mandioca aos alambiques trazidos pelos portugueses.
Durante
a safra da mandioca, que dura cerca de quatro meses, no segundo
semestre, ele passa boa parte dos dias envolvido com a produção da
bebida em dois alambiques rústicos mantidos nos fundos da casa do pai,
Raimundo Ferreira Lima, de 69 anos, que lhe ensinou todo o processo há
22 anos.
Para aguentar o calor maranhense, Leo trabalha à
vontade, de bermuda, chinelo e camisa polo. Começa por ralar a raiz com a
ajuda de motor elétrico, em um pequeno barracão sem paredes. A massa
produzida no processo vai sendo armazenada em um tacho de madeira, antes
de ser prensada, enxuta e assada em fornos de farinha, na forma de
grandes tortas, chamadas de bijus.
Depois de prontos, os bijus
são transferidos para um jirau, onde são abafados por oito dias, para
criar fungos. Até que, por fim, são esmagados e deixados para fermentar
em caixas d'água por mais oito dias, antes do processo de destilação.
Atualização da tradição
A
partir de dezembro, porém, Leo e outros 22 produtores rurais locais,
reunidos na recém-criada Cooperativa dos Produtores de Tiquira e
Agricultores Familiares de Guaribas de Urbano Santos (Cooptaf Guaribas),
pretendem colocar no mercado a Tiquira Guaribas, produzida em uma
pequena fábrica construída pela prefeitura local, a cerca de 50 metros
da casa de seu Raimundo.
O prédio já está pronto, o fornecedor das máquinas foi escolhido e o contrato, assinado.
Com
isso, a expectativa é de que tudo esteja finalizado para os testes com o
equipamento, o treinamento dos cooperados e o lançamento da bebida até
dezembro, afirma Priscila Faustina de Souza Correia, secretária
municipal de Agricultura.
Um dos cursos programados vai ensinar os cooperados a
controlar com precisão o teor de álcool da bebida. O processo, hoje, é
empírico.
"A tiquira é um negócio meio doido, ela nunca dá igual
aqui no alambique. E a gente mede aqui é no olho. É goela abaixo.
Depende quantos copos o sujeito tomar antes de cair, a gente sabe quanto
deu", afirma, rindo.
"Esses dias medi o de uma que tínhamos
guardada, deu 68º. O normal são 38º, o técnico falou". As tiquiras das
marcas Guaaja e Timbotiba, já industrializadas, têm grau etílico de 40º.
A
iniciativa tem potencial para gerar mudanças profundas na produção de
tiquira em Guaribas, hoje um dos maiores polos de fabricação da bebida
no Estado, com 135 produtores.
Um dos motivos que levou a bebida a
sobreviver apenas em poucas áreas do Maranhão foi a competição com a
cachaça, mais fácil de produzir. Em anos recentes, no entanto,
pesquisadores de universidades como a Federal do Maranhão e a
Universidade de Brasília começaram a desenvolver estudos para acelerar,
baratear e tornar a produção da tiquira economicamente mais atrativa.

Sozinho, Leo produz hoje cerca de 60 litros da
bebida por dia. Cada litro é vendido, em média, por R$ 10, em galões de
20 litros. Mas não há comprador fixo e o preço flutua bastante.
Com
a cooperativa, além da padronização da qualidade e do teor alcoólico da
bebida, será possível cobrar mais pelo litro e estabelecer contratos
comerciais de longo prazo, de volumes maiores.
"Nossa renda
mensal está em uns mil e pouquinhos. Acho que, com a cooperativa, vai
dar pra dobrar ou triplicar", diz Leo. "Estamos agora trabalhando com o
Sebrae e os produtores na criação da embalagem e rótulo para o produto",
diz Priscila.
Inicialmente, a previsão é de que sejam produzidos
até 18 mil litros da bebida por mês. Com o tempo, porém, a expectativa é
de que outros produtores locais de mandioca e tiquira se juntem à
cooperativa e que a produção cresça, afirma Priscila, da Secretaria de
Agricultura.
Barreiras
O aumento da produção da bebida, porém, ainda enfrenta barreiras para se expandir, principalmente no Maranhão.
A
principal delas é logística. A distância de grandes mercados
fornecedores de matérias-primas e consumidores de bebidas, como São
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, encarece muito o processo de
fabricação, afirma José Moraes, da Timbotiba.
"Tudo vem de fora.
Garrafa, rolha. Até a matéria-prima aqui é cara. Um quilo de amido de
mandioca custa R$ 4,5 a R$ 5. Compro no sul do Paraná a R$ 1,50, R$
1,20", diz.
A vantagem da tiquira, no entanto, é que pode ser
produzida, com poucas adaptações, em qualquer alambique. O próprio
Moraes alugou um na pequena cidade de Capela do Alto, próxima de
Sorocaba (SP), e iniciou a produção em São Paulo, depois de uma breve
experiência no Maranhão.
Chegou a tirar entre 6 mil a 8 mil
litros por mês e a entrar em grandes redes varejistas. Mas, em 2016, o
distribuidor com o qual tinha contrato fechou de forma repentina. Somado
a problemas pessoais, diz ele, o prejuízo com a quebra do fornecedor o
levou a interromper a produção e procurar um parceiro do ramo de bebidas
para cuidar do assunto. Mas ainda não encontrou.
"É que eu
também já estou com 55 anos. Já não posso entrar em qualquer aventura",
diz ele, que voltou a advogar. "Se não, faria de novo. O negócio é bom".
Mesmo com o problema logístico, Margot e seu filho, da Guaaja, continuam a produzir no Maranhão.
O
motivo, afirma ela, que é carioca, é manter a bebida no local de
origem. O próximo passo, agora, é buscar a certificação de produto
orgânico, o que vai exigir que empresa plante a própria mandioca, diz
ela.
Será mais uma característica com forte apelo em mercados internacionais, além do exotismo, a contribuir para a tiquira avançar. (BBCBrasil)
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