terça-feira, 19 de novembro de 2024

Dia do Cordelista - literatura de cordel, poesia e informação na feira livre

O cordel não é nosso, é oriundo da Europa, provavelmente de Portugal, mas aqui ganhou forma própria, tornou-se popular e alcançou a imortalidade, como tudo que é feito de forma natural e espontânea, sem depender de dotes acadêmicos

No Dia do Cordelista – 19 de novembro –, homenagem ao paraibano Leandro Gomes de Barros, considerado o mais importante dos cordelistas brasileiros, vale falar desses astros da literatura popular, que encantam com seus versos. Décadas passadas, onde houvesse muita gente reunida, haveria sempre um desses poetas. E na maior feira livre do Brasil, na Cidade Princesa, os cordelistas vendiam suas obras e desfrutavam de enorme popularidade. Alguns, como Rodolfo Coelho Cavalcante, Antônio Alves e Cuíca de Santo Amaro, deixaram seus nomes na história pela qualidade do que produziram.

O tempo era outro. Ninguém poderia imaginar que chegariam a globalização, o telefone celular e seus aplicativos, a inteligência artificial, o PIX e tantas outras coisas que estão tornando o mundo cada vez melhor. A cidade e a zona rural eram distantes, em tudo, e só nas segundas-feiras a feira livre da Cidade Princesa fazia esse limite estreitar. Vendendo os produtos da terra – frutas, raízes, ovos, galinha, farinha, feijão –, e comprando artigos industrializados, o ruralista, chamado "tabaréu", tinha algum contato com o progresso.

A feira livre tinha aspectos especiais independentemente da mercantilização. Era ali que o iletrado "homem da roça", como se dizia, tinha oportunidade de encontrar amigos, conhecer autoridades, ouvir repentistas, trios de forró, artistas circenses, mágicos, adivinhos, propagandistas e uma série de artistas populares. Todavia, ele reservava extrema atenção quando chegava o cordelista, principalmente aqueles considerados bons declamadores.

O cordelista daquela época, de algum modo, pode-se dizer que correspondia aos atuais repórteres de jornais ou da televisão, naturalmente não tão preparados e atualizados, mas com o poder de fazer o ouvinte "decorar" cada informação e repassá-la. Notícias com dias, meses de atraso, e até inverídicas ou fantasiosas, mas que, a partir dali, tornavam-se verdade. Considerado o grande poeta popular da Bahia, o alagoano Rodolfo Coelho Cavalcante morou em Feira de Santana durante bom tempo e era atração na feira livre da cidade. Sempre bem trajado, terno e gravata, lia os seus cordéis rodeado por multidões que os adquiriam, a maioria, mesmo sem saber ler.

“A Moça que Bateu na Mãe e Virou Cachorra”, lançado na década de 1950, foi um sucesso estrondoso com várias tiragens. Ao que se sabe, foi o cordel mais vendido no país. A história criada pelo autor, tendo como cenário a cidade de Canindé, no Ceará, e como protagonistas "dona Matilde, a mãe, e Helena, a filha", impressionava tanto que no interior do Nordeste servia como uma espécie de cartilha de orientação, que muitos pais mostravam à família, em especial às filhas.

Na história, Helena batia na mãe e desacreditava os símbolos religiosos, afirmando "Quero me virar num cão/ se essa tal da Sexta-Feira/ da Paixão não é besteira/ da nossa religião". À noite, o canto de uma ave chamada "rasga mortalha" (espécie de coruja) era um "presságio" por conta do cordel, fazendo com que muitos orassem, pedindo a Deus para livrá-los de algo ruim que pudesse acontecer.

Mais de seis décadas passadas, ainda há quem se lembre da terrível história e, na Semana Santa, segundo o folheteiro Jurivaldo Alves, algumas senhoras do interior procuram o cordel para mostrá-lo às filhas como um exemplo. “A Moça que Bateu na Mãe e Virou Cachorra”, conforme Jurivaldo, vendeu mais de um milhão de exemplares. "São números relativos aos impressos oficialmente, mas houve muitas tiragens clandestinas", garante. Bem depois, em 1973, "A Terra Brilhará Outra Vez - A Vinda do Cometa Kohoutek", também de Rodolfo Coelho Cavalcante, alcançou índices extraordinários de vendagem, garante Jurivaldo: "Foi graças a esse cordel que pude me casar", lembra, acrescentando que, com tantos livros nas mãos, vendia-os, já que a procura era interminável. "Todo mundo queria saber sobre o cometa".

Sem ser feirense de nascimento, Antônio Alves da Silva, que era de Mata de São João, mas aqui se radicou e viveu durante cerca de 50 anos, até seu falecimento, foi outra expressão do cordel. Escreveu mais de 100 livros e venceu diversos concursos do gênero, até mesmo em São Paulo. Na feira livre, os livros de Antônio Alves tinham venda garantida, e um deles, "Os Perigos de Fernando e Joventina", baseado em um fato real ocorrido em uma boate na "Rua do Meio", como a Sales Barbosa era conhecida, tornou-se sucesso.

O caso envolveu um jovem e rico negociante de gado que enfrentou e matou dois pistoleiros que o ofenderam. Fernando não foi preso por ser filho de um homem rico e prestigiado. Daí em diante, há capítulos interessantes nos versos de Antônio Alves. Até hoje, garante Jurivaldo Alves, cordéis como "A Moça que Bateu na Mãe e Virou Cachorra" e "Os Perigos de Fernando e Joventina" são procurados, naturalmente de uma forma bem menos intensa.

Quando a feira livre era realizada no centro da cidade, até 1977, quando foi inaugurado o Centro de Abastecimento, a presença de cordelistas do Ceará, Paraíba, Pernambuco e outros estados nordestinos era comum. O mesmo ocorrendo com baianos como Cuíca de Santo Amaro, outro grande nome do cordel. Nascido em Salvador, apesar de ter seu nome agregado ao de um município do recôncavo, José Gomes (Cuíca) era o cronista do dia a dia e esteve muitas vezes em Feira de Santana, sendo respeitado por uns e detestado por outros pelo estilo crítico e contundente. Abordava temas da política, religião, sociedade ou qualquer outro, contanto que pudesse ter impacto. Era considerado polêmico e intrigante, tendo se envolvido em alguns embates devido aos nomes que foram citados nas suas histórias. Todavia, hoje, os cordéis de Cuíca, como "Os Embromadores do Povo" e "O Lobo de Paripiranga", são extremamente raros e procurados por colecionadores.

Homens simples, com pouco estudo e uma verve admirável, os cordelistas tradicionais tinham enorme capacidade para transmitir fatos reais ou por eles imaginados e, por mais simples que fossem, sabiam prender a atenção do leitor e do público, quando interpretavam sua obra. Esse encanto perdeu lugar com o avanço da tecnologia, todavia, uma nova geração, encabeçada pelo feirense Franklin Maxado, luta pela preservação da antiga e rica literatura de cordel.

Por Zadir Marques Porto


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