domingo, 24 de novembro de 2024

 


Estilingues

Quando de minha rio-grandense infância, estilingues – aparatos de ‘brincadeiras’ da meninada – eram mais conhecidos por ‘funda’ ou ‘atirador’ (assim mesmo, no masculino).

Há designações outras: ‘baleadeira’, ’bodoque’ ou ‘badoque’, ‘atiradeira’, ‘beca’, ‘peteca’, em distintas partes do Brasil. Em Portugal, é ‘fisga’ ou ‘setra’; em Angola, ‘fisga’ e ‘‘xifuta’.

Estilingues, são “aparatos usados para o disparo de projéteis, impulsionados por força mecânica manual, com auxílio de elásticos”.

Tais fundas foram objetos de atração infanto-juvenil. Imagine-se: para praticar a pontaria em passarinhos, apedrejá-los, falando-se francamente.

Os ‘mais velhos’ costumavam interporem-se à predatória prática. Mas, pouco adiantava.

Para fazer-se uma funda artesanal, quando menino fui - falo dos anos cinquenta –, em passeio pelo quintal e vizinhanças, buscava-se um galho com formato de forquilha, duas tiras de borracha de um pneumático velho, um pedaço de couro – geralmente, a lingueta de um sapato gasto, mais barbante encerado e ‘estava feita a festa’. Passara a ser feliz proprietário de uma improvisada funda.

Cenário: cidade de Rio Grande, manhãzinha de um domingo ensolarado – 1953, de meus doze anos – o avô Valdemar, à venda da esquina conversando com sr. Rui Dolci, proprietário do estabelecimento.

Eu, do lado de fora, alegre e satisfeito, treinava pontaria com minha funda ‘nova’.

O velho avô, resmungando:

 - Menino, menino! Cuidado com esse brinquedo. É perigoso, você vai acabar acertando em alguém!

Os ‘anjinhos da boca mole’, devem ter dito ‘amém’. Não é que, instantes após, eu acertaria, em cheio, no peito de um pardal que ciscava à beira da calçada do lado oposto de onde estávamos?

Pow! Com o impacto, o bichinho foi jogado à distância.

Meu avô que, discretamente vigiava, de pronto acudiu, em tom de voz repreensivo.

- Você viu o que aconteceu? Eu não avisei?

Do outro lado, o passarinho espanando as asinhas, dava sinal de vida.

O velho continuou:

- Agora vá lá e apanhe o bichinho!  Rápido!

Nem terminara ele de dar a ordem e eu, ‘rabo entre as pernas’, sem olhar para os lados, correndo, atravesso a rua.  Apanho o bichinho, moribundo, com todo cuidado. Em vão, morre em minhas mãos. Duas lágrimas, quentíssimas, toldaram minha visão.

 E agora? – me perguntava, enquanto, a passos de cágado, temeroso, retornava em direção ao avô.

- E agora? O velho parecia ter adivinhado a pergunta que me atormentava. As duas lágrimas haviam se convertido em convulsivo choro. – Não adianta chorar, o que você vai fazer agora, com o bichinho morto?

Não esperou a resposta, completando: - Vá para casa, cave uma cova no quintal e enterre o passarinho, de quem você tirou a vida. Espero tenha aprendido: não se tira aquilo que não se pode dar. A vida é o principal bem dos seres vivos.

Resumo do drama. Passam-se setenta anos e, até hoje, em mim ressoa aquela lição. Nunca mais tive estilingues e jamais presenteei meus filhos com um deles.

Encerrando, cá ‘pra’ nós, que ninguém nos ouça: rememorar o fato, ainda, dói n’alma e me umedece os olhos.

Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual

Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,

participa do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos - BA
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