Estilingues
Quando de minha rio-grandense infância, estilingues – aparatos de ‘brincadeiras’ da meninada – eram mais conhecidos por ‘funda’ ou ‘atirador’ (assim mesmo, no masculino).
Há designações outras:
‘baleadeira’, ’bodoque’ ou ‘badoque’, ‘atiradeira’, ‘beca’, ‘peteca’, em
distintas partes do Brasil. Em Portugal, é ‘fisga’ ou ‘setra’; em Angola,
‘fisga’ e ‘‘xifuta’.
Estilingues, são “aparatos usados
para o disparo de projéteis, impulsionados por força mecânica manual, com
auxílio de elásticos”.
Tais fundas foram objetos de atração infanto-juvenil. Imagine-se: para praticar a pontaria em passarinhos, apedrejá-los, falando-se francamente.
Os ‘mais velhos’ costumavam
interporem-se à predatória prática. Mas, pouco adiantava.
Para fazer-se uma funda
artesanal, quando menino fui - falo dos anos cinquenta –, em passeio pelo
quintal e vizinhanças, buscava-se um galho com formato de forquilha, duas tiras
de borracha de um pneumático velho, um pedaço de couro – geralmente, a lingueta
de um sapato gasto, mais barbante encerado e ‘estava feita a festa’. Passara a
ser feliz proprietário de uma improvisada funda.
Cenário: cidade de Rio Grande,
manhãzinha de um domingo ensolarado – 1953, de meus doze anos – o avô Valdemar,
à venda da esquina conversando com sr. Rui Dolci, proprietário do
estabelecimento.
Eu, do lado de fora, alegre e
satisfeito, treinava pontaria com minha funda ‘nova’.
O velho avô, resmungando:
- Menino, menino! Cuidado com esse brinquedo.
É perigoso, você vai acabar acertando em alguém!
Os
‘anjinhos da boca mole’, devem ter dito ‘amém’. Não é que, instantes após, eu
acertaria, em cheio, no peito de um pardal que ciscava à beira da calçada do
lado oposto de onde estávamos?
Pow!
Com o impacto, o bichinho foi jogado à distância.
Meu
avô que, discretamente vigiava, de pronto acudiu, em tom de voz repreensivo.
- Você viu o que aconteceu? Eu
não avisei?
Do
outro lado, o passarinho espanando as asinhas, dava sinal de vida.
O
velho continuou:
- Agora vá lá e apanhe o
bichinho! Rápido!
Nem
terminara ele de dar a ordem e eu, ‘rabo entre as pernas’, sem olhar para os
lados, correndo, atravesso a rua. Apanho
o bichinho, moribundo, com todo cuidado. Em vão, morre em minhas mãos. Duas
lágrimas, quentíssimas, toldaram minha visão.
E agora?
– me perguntava, enquanto, a passos de cágado, temeroso, retornava em direção
ao avô.
- E agora? O
velho parecia ter adivinhado a pergunta que me atormentava. As duas lágrimas
haviam se convertido em convulsivo choro. –
Não adianta chorar, o que você vai
fazer agora, com o bichinho morto?
Não
esperou a resposta, completando: - Vá
para casa, cave uma cova no quintal e enterre o passarinho, de quem você tirou
a vida. Espero tenha aprendido: não se tira aquilo que não se pode dar. A vida
é o principal bem dos seres vivos.
Resumo
do drama. Passam-se setenta anos e, até hoje, em mim ressoa aquela lição. Nunca
mais tive estilingues e jamais presenteei meus filhos com um deles.
Encerrando, cá ‘pra’ nós, que ninguém nos ouça: rememorar o fato, ainda, dói n’alma e me umedece os olhos.
Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é
autor do livro virtual
Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas
e Palavras ao Vento,
participa do Colares – Coletivo Literário Arte
de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos - BA
[email protected]
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