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Tim Vickery |
As minhas
enteadas têm uma amiga cuja mãe era médica no Exército, com patente de coronel.
Ela parou de trabalhar cedo e ganha uma aposentadoria muito generosa, que
depois de seu falecimento vai passar para a filha.
Sempre achei
isso inacreditável. Parece um privilégio além das condições do país, mas que
com certeza demonstra o reconhecimento da importância estratégica das Forças
Armadas para a governabilidade.
Surpreende-me
que pagamentos assim não sejam mais polêmicos no debate doméstico. Cheguei à
conclusão de que a noção de hierarquia tem raízes tão profundas por aqui que um
privilégio como esse, praticamente um "suborno legal", pareça algo
dentro da normalidade.
Apesar disso,
já é mais comum ouvir críticas sobre programas sociais como Bolsa Família,
frequentemente classificados como um "assistencialismo que só cria
dependência".
Pode ser. Mas
há um quadro maior. No exemplo dado acima, a mãe da amiga das minhas enteadas
agora mora em Portugal. Sua filha se estabeleceu na Irlanda. Portanto, no caso
dela, a aposentadoria se trata de um subsídio que o Estado brasileiro concede
para a economia europeia.
Não há o
mesmo risco com o Bolsa Família. Pouco do dinheiro vai para contas de poupança.
Vai ser gasto, aqui no Brasil, gerando um efeito multiplicador e animando o
comércio local.
Claro, é
polêmico separar pagamentos por um conceito de merecimento. Mas quem se
incomoda muito com isso deve se preparar: a política do futuro promete ser
cheia de propostas amplas neste sentido.
A ideia de
uma renda básica universal (Universal Basic Income, ou UBI em inglês) está
ganhando adeptos, com argumentos a favor tanto à direita como à esquerda do
espectro político - embora com diferenças de propostas.
Os defensores
de direita enxergam a UBI como um meio de minimizar as funções do Estado; já os
de esquerda buscam o oposto. O que ambos têm em comum é a abordagem de um
grande problema.
O sistema
precisa de consumo. Sem consumo, a casa cai. Mas o consumo está ameaçado.
Primeiro,
sofre por conta do poder que os políticos, com pouca sabedoria, deram para o
setor financeiro, que pode até ser um bom servo, mas faz um mestre muito ruim.
Os bancos lucram com a dívida alheia e, sem os
regulamentos que limitavam as suas ações, as instituições bancárias são capazes
de criar uma dívida tão grande e de inflar tanto os preços de imóveis que o
dinheiro para consumir produtos e serviços acaba rarefeito - um buraco que o
credito só consegue tapar de maneira temporária.
Segundo, o
consumo sofre da estagnação de salários, um processo que provavelmente vai
continuar.
No percurso
de sua história dinâmica, o capitalismo destrói para criar. É sempre
traumático, mas a transição é facilitada pelo fato de que normalmente a
atividade nova paga melhor do que a anterior.
Mas isso não
se aplica mais. A revolução digital tira funções, e a reprodução quase de graça
desafia conceitos comuns de precificação. E também há o desenvolvimento da
tecnologia - robôs são capazes de substituir a mão de obra e logo serão capazes
de substituir muito mais.
Eles já podem
desenvolver funções manuais, e quando conseguirem passar no Teste de Turing e
produzir a inteligência de um ser humano, vão poder desempenhar funções
cerebrais.
Tudo isso é
muito interessante para empresas - no curto prazo. Inicialmente, elas podem
reduzir os seus custos com a mão de obra, mas logo têm um problemão: como
consumidores, robôs têm deficiências graves - eles não compram nada. Como e
para quem, então, a empresa vai vender o que produz?
Aí entram na
pauta os benefícios de um sistema de renda básica universal. Não é uma ideia
fácil, e organizá-lo é uma dor de cabeça burocrática.
Na verdade, a
burocracia teria que ser muito maior se o sistema não fosse universal. Ter de
decidir quem seriam os beneficiários - seria impossível de implementar de uma
maneira justa. Mas a universalidade desafia todas as nossas noções de
merecimento, da ligação entre suor e renda.
Mas, pensando
bem, por que somente coronéis aposentadas têm direito a uma boa vida?
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em
História e Política pela Universidade de Warwick.
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