A princípio, a
série "CSI", bailes de drag queens em Nova York na década de 1980 e
as ruas de Recife não têm muito em comum, mas, para a pernambucana Natália
Oliveira, eles têm tudo a ver.
A cientista
misturou tudo isso ao transformar sua tese de doutorado em clipe e tornar-se a
única brasileira entre os finalistas de um concurso da revista Science, uma das
mais importantes publicações da área do mundo.
Há dez anos, a
revista e a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS, na sigla em
inglês) criaram a competição, chamada Dance seu PhD, para desafiar
pesquisadores a explicarem seus doutorados por meio da dança. A ideia é
divertir e informar ao mesmo tempo, criando uma ponte entre os laboratórios e o
público.
Vale qualquer
estilo, contanto que o autor participe. E é o que Natália faz no vídeo de pouco
mais de cinco minutos, produzido com a ajuda de amigos.
"Podem
estranhar e dizer que isso não é um trabalho sério, mas é bom quebrar esse
paradigma", diz a pesquisadora de 28 anos, doutora em Biologia Aplicada
que agora cursa pós-doutorado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
"Cientistas buscam resolver problemas
do mundo. Então, quanto mais gente entender e se engajar com a ciência, melhor.
Especialmente agora que a área brasileira passa por um momento difícil."
Dançando pelas
ruas do Recife e nos corredores e laboratório da universidade, Natália explica
no clipe sua tese sobre o uso de biossensores para identificar fluidos
corporais em cenas de crimes, mesmo que o autor tenha tentado apagar seus
rastros com materiais de limpeza.
A sugestão de
participar do concurso veio de um professor que sabia do envolvimento da
cientista com teatro. Ela comprou a ideia e levou para o grupo de dança do qual
participa desde o início do ano, o Vogue 4 Recife.
O inspiração da
coreografia vem do vogue, um estilo de dança criado em bailes de drag queens no
Harlem, em Nova York, que teve seu auge em meados dos 1980 e início dos anos
1990 e foi tema do documentário Paris is Burning (1990).
O clipe traz
Natália e seus amigos "lacrando", como se diz na cultura gay, com
passos de dança que tornaram-se famosos em todo o mundo pelas mãos da Madonna,
com a música - e clipe - Vogue.
"A ideia
era explorar a representatividade das pessoas que fundaram essa cultura, como
as drag queens, mulheres trans, gays negras e latinas e as travestis",
conta ela. E, ao mesmo tempo, explicar sua tese de doutorado: "Funciona
como o aparelho que o diabético usa para medir o nível de açúcar no sangue, mas
para fluidos biológicos em locais de crimes".
Ciência
forense
Natália já havia
trabalhado com essa tecnologia em seu mestrado, usando biossensores para
detectar o vírus da dengue. O próximo passo foi aplicar a técnica às ciências
forenses, uma área que sempre despertou seu interesse. Por isso o clipe faz
referências à série americana CSI, em que uma equipe de peritos busca
desvendar crimes.
"Sempre fui
muito fã da série, mas depois, quanto mais conhecia sobre a ciência forense,
mais via que o programa retratava as coisas de uma forma que não era
real", diz Natália, que deixou para trás a ciência forense da ficção para
se dedicar à do mundo real. "Há uma carência do mercado, porque muitos
testes desse tipo não conseguem detectar materiais biológicos depois que a cena
do crime é limpa."
Natália
trabalhou por dois meses na elaboração do clipe e da coreografia, o gravou ao
longo de duas tardes e levou uma semana para finalizá-lo. O trabalho é um dos
quatro finalistas entre os vídeos de Química. Há ainda disputas em Biologia,
Física e Ciências Sociais. A votação vai até hoje - o público pode indicar seus
favoritos pelo
site.
O vencedor de
cada uma das quatro categorias, eleito pelo júri com base em critérios
científicos, artísticos e na união desses dois aspectos, receberá um prêmio de
US$ 500 (R$ 1.620). Dentre eles, será determinado o grande ganhador, cujo autor
receberá um prêmio adicional de US$ 500 e participará da conferência anual da
AAAS nos Estados Unidos.
Natália diz
estar "com as melhores expectativas possíveis" e "convocando
todo mundo" que conhece para ajudar na promoção do vídeo.
'Cortes
significativos'
"Só tem nós
do Brasil, isso é bom para divulgar o trabalho que fazemos aqui. A ciência tem
uma linguagem bem técnica, e isso pode ajudar a torná-la mais acessível",
diz a cientista pernambucana, para quem isso ganha ainda mais importância
diante do momento pelo qual passa essa área no país.
"Muitos
cientistas e professores estão fechando laboratórios por causa do corte de
programas de apoio e financiamento", afirma, citando como exemplo a
neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que deixou o Brasil rumo aos Estados
Unidos afirmando que a falta de verbas inviabilizou suas condições de trabalho
por aqui.
Natália conta
que "cortes significativos" em financiamentos de agências de incentivo
como CNPq e CAPES fizeram o Laboratório e Imunopatologia Keiko Azumi, da UFPE,
onde ela fez suas pesquisas, abrir um edital para doações privadas para
garantir a continuidade dos trabalhos.
"A maioria
das instituições de ensino superior estão passando por isso hoje. Quem dependia
de recursos públicos foi diretamente afetado pelos recentes cortes em ciência e
tecnologia", diz Natália.
"Temos de
mudar essa ideia de que a ciência não é disponível e acessível ao público. Só
assim as pessoas vão entender o que fazemos e nos apoiar ainda mais neste
momento difícil." (BBCBrasil)
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