A brasileira Lucia Dellagnelo ajudou a escolher dois entre 143 projetos
de tecnologia na educação que foram vencedores da mais recente edição do Prêmio
Unesco, organismo da ONU para educação e cultura.
As iniciativas, praticadas na Índia e no Marrocos, receberão prêmio de
US$ 25 mil.
Doutora e Mestre em Educação pela Universidade de Harvard, Dellagnelo
foi secretária de Desenvolvimento Econômico Sustentável em Santa Catarina de
2013 a 2015 e hoje é diretora-presidente da ONG Centro de Inovação para a
Educação Brasileira (Cieb).
Na premiação da Unesco, ela foi presidente do júri e representante da
América Latina. Em entrevista à BBC Brasil em São Paulo, Dellagnelo conta o que
viu de mais inovador, entre tantas propostas mundo afora, para tornar a
educação mais igualitária, contemporânea e qualificada usando a tecnologia. E
opina sobre onde o Brasil vai bem e onde precisa melhorar.
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC
Brasil - Quais foram os critérios para escolher os projetos premiados em Paris?
Lucia
Dellagnelo - Muitas pesquisas mostram que, para a tecnologia
ter um impacto positivo na educação, é importante que seja trabalhada pelo
menos em quatro dimensões: visão clara do objetivo, "para que e como vou
usar a tecnologia"; competência dos professores e gestores no uso daquela
tecnologia; qualidade dos conteúdos e recursos educacionais digitais
desenvolvidos; e infraestrutura. Procuramos avaliar quais projetos realmente
contemplavam isso, mas também consideramos se aquela política educacional era
abrangente e de longo prazo.
BBC
Brasil - O que seria esse longo prazo?
Dellagnelo
- Por exemplo, um dos premiados, o Marrocos, tem uma
política baseada nesses quatro pilares há mais de 15 anos. O país vem
gradativamente implementando um plano chamado Genie, que sobreviveu a trocas
políticas e de gestão. Se não for a longo prazo, é difícil correlacionar o uso
de tecnologia com o impacto na qualidade. Não é pelo fato de usar um aplicativo
ou uma plataforma adaptativa num ano que no seguinte serão vistas melhorias.
BBC
Brasil - O projeto da Índia também tinha esse perfil?
Dellagnelo
- A Índia tem um problema muito sério: a evasão no
que seriam os nossos fundamental 2 e ensino médio. O jovem faz a escola
primária, aprende a ler e escrever, e depois tem muita dificuldade em seguir
adiante não só por problemas econômicos, mas também porque, em vilas muito
pequenas e distantes dos grandes centros, não existe oferta de ensino médio.
Não há quem dê aula de física e química nesses lugares, por exemplo.
Por meio de
videoaulas à distância, e usando uma parceria com a (universidade americana)
MIT no desenvolvimento de tecnologia e laboratórios virtuais, conseguiram
baixar o índice de evasão de jovens oferecendo um conteúdo de muita qualidade.
O projeto, chamado CLIx, é de um instituto, em parceria com governos locais.
BBC
Brasil - O prêmio valorizou a inovação também? Videoaulas são usadas já há
algum tempo em outros lugares.
Dellagnelo
- A função maior do prêmio é dar visibilidade a
projetos que estão acontecendo e mostrar que, às vezes, uma tecnologia pode não
ser uma grande inovação num país e ser em outro. Para uma população isolada,
que não tem nem luz elétrica, que precisa usar gerador para acessar a internet,
o impacto da videoaula é muito diferente.
Tem um projeto
chinês, de que gostei muito também, em que um professor da capital,
identificado como muito capaz, dava aulas interativas às vezes para 300
crianças espalhadas em vários lugares do país. Ao mesmo tempo, formava o
professor dessa vila, que estava lá assistindo.
Sim, a videoaula não é uma tecnologia revolucionária - existe isso no
Amazonas, inclusive -, mas tivemos que usar essa relatividade na votação: a
tecnologia proposta resolve algo que não estaria sendo resolvido se não
existisse?
Para mim, fica claro que tem solucionado um problema real, que é o
acesso a professores qualificados. Porque o prêmio também tem esse viés: toda
criança e jovem do mundo, independentemente do país, da cultura e da língua que
fala, tem direito à educação de qualidade. Como a gente faz a tecnologia
trabalhar a favor desse direito? (...) Tentamos mostrar políticas mais amplas
de uso de tecnologia que foram incorporadas, de certa maneira, pelo poder
público - nacional, estadual ou local -, fazendo uma mudança sistêmica.
BBC
Brasil - Projetos brasileiros também concorreram?
Dellagnelo
- Sim, mas eles não ficaram entre os 25 finalistas.
Acho que uma das razões é o fato de serem voltados a grupos muito específicos.
Um era de educação ambiental que usava tecnologia, porém estava muito pautado
por visitas presenciais. Um outro, de uma professora de acessibilidade, focava
na tecnologia para pessoas com deficiência auditiva.
BBC
Brasil - Você foi jurada representando a América Latina. Qual a situação do
Brasil no continente em termos de tecnologia educacional?
Dellagnelo
- Tem países que estão melhores do que a gente nesse
quesito, como Uruguai, Chile e Costa Rica. O Uruguai adotou o projeto Plan
Ceibal, cujo lema é "um computador por aluno". É um país
superpequeno, de 3,5 milhões de habitantes, parece muito mais fácil fazer isso.
Mas esse mesmo projeto, que conta com cento e poucos funcionários, também cuida
de toda a tecnologia educacional: compra, distribui e faz manutenção de
computadores, além de capacitar professores e fazer parcerias.
O país tinha, por exemplo, um grande problema com professores de inglês
na área rural. Fizeram um convênio com o Reino Unido e todas as aulas de inglês
são dadas a partir de Londres, com o professor também ali, aprendendo.
BBC
Brasil - A experiência chilena é parecida?
Dellagnelo
- Lá houve um desenvolvimento diferente. O centro de
inovação em educação se chama Enlaces e era uma rede de universidades que fazia
pesquisa e experiências em tecnologia educacional. Depois de alguns anos, ele
foi incorporado pelo Ministério da Educação como um departamento que só cuida
disso. Na Costa Rica, é uma fundação sem fins lucrativos que também recebe a atribuição
do governo de cuidar de toda a tecnologia educacional, treinar os professores,
comprar computadores e tal.
BBC
Brasil - Onde o Brasil está pecando?
Dellagnelo
- Não temos essa incorporação em larga escala da
tecnologia nas escolas brasileiras. Oferecemos soluções tecnológicas de
vanguarda, as empresas brasileiras não deixam nada a desejar nesse ponto, mas
temos iniciativas isoladas no dia a dia escolar. Por quê?
Entre outros motivos, a nossa infraestrutura não é a melhor e o nosso
professor não sabe incluir a tecnologia na prática pedagógica dele. Um dos
diferenciais do projeto marroquino premiado foi a criação, em parceria com a
Coreia do Sul, de centros de formação profissional para professores em várias
regiões. O Brasil está precisando disso.
BBC
Brasil - Para implementar políticas públicas, são necessários bons gestores.
Como estamos nessa categoria?
Dellagnelo
- Temos excelentes gestores públicos. O problema é
que a gestão pública é confundida com a política. Quando há troca de governo,
às vezes um excelente gestor vai para um cargo totalmente secundário para dar
lugar a um afilhado político. Então há uma desvalorização contínua. Mas fico
bastante impressionada quando vou a Brasília e encontro jovens comprometidos e
bem formados eticamente. Acho que está surgindo uma nova geração. Se
conseguissem diminuir a ingerência política...
BBC
Brasil - Professores jovens têm mais facilidade para implementar a tecnologia
na sala de aula?
Dellagnelo
- Se faz diferença a geração digital do professor?
Não necessariamente. Não é pelo fato de usar constantemente a tecnologia na sua
vida que um professor jovem vai saber ensinar com tecnologia. Não está
correlacionado diretamente com a idade, e sim com se formar para fazer isso.
BBC
Brasil - Mas uma aula, hoje, pode ser atraente se o professor usar somente
lousa e pincel atômico?
Dellagnelo
- Há ótimos professores que não usam muito a
tecnologia, mas o que não se pode continuar fazendo é dar aquela aula
tradicional na qual o professor transmite o conhecimento e acha que seus alunos
estão passivamente absorvendo o conteúdo. Os nativos digitais têm um spam de
atenção muito curto. Fala-se em 10 a 15 minutos. Se o professor ficar falando
uma hora, eles focarão apenas 25% desse tempo no que ele falou.
Hoje, o que se defende é a aprendizagem ativa, na qual o estudante tem
de botar a mão na massa, experimentar, tentar resolver um problema real com
aquela informação, com aquele conhecimento, para realmente poder aprender. E
tem a questão da contemporaneidade. Os alunos querem que a escola reflita
minimamente o que é a vida fora dela, uma vida permeada por tecnologia.
BBC
Brasil - É preciso recorrer ao que há de mais moderno para cativar a atenção
deles?
Dellagnelo
- Não é necessário nada muito sofisticado. Fui dar
uma palestra no Espírito Santo faz alguns dias e lá havia uma professora de uma
escola do interior do Estado que usa um aplicativo gratuito chamado Remind.
Essa professora monta a sala dela na plataforma, inclui todos os alunos, cujos
e-mails estão cadastrados, e planeja a aula com uma sugestão de leitura. Como
praticamente todos os estudantes têm celular, vai fazendo perguntas via
smartphone: "Gente, só pra ver se leram mesmo, qual o nome do cara que fez
tal coisa?". Pega as respostas, mas não precisa ficar corrigindo uma a
uma. O próprio aplicativo diz quantos e quais acertaram.
Aí ela organiza a sala pelos grupos de alunos que sabe que já aprenderam
esse conteúdo e para quem ela pode dar uma nova tarefa, e por aqueles que
precisam de uma atenção especial. Ou seja, usando um aplicativo gratuito, sem
uma infraestrutura do outro mundo, está fazendo uma revolução na educação.
BBC
Brasil - Essa interação poderia acontecer apenas no plano virtual?
Dellagnelo:
Parece um paradoxo, mas, quanto mais a gente usa a
tecnologia, mais a gente valoriza na educação os momentos presenciais. Mas
esses momentos presenciais não são apenas transmissão de conhecimento. São
reflexão, atividades práticas, colaboração entre os estudantes.
BBC
Brasil - E dá para ter só tecnologia, sem professor?
Dellagnelo
- Não. Essa é uma coisa que as pesquisas estão
mostrando. Três relatórios publicados no final do ano passado mostram que é
muito importante colocar a tecnologia na mão do professor, e não direto e
somente no colo dos alunos. Entre todas as variáveis, talvez a qualidade do
professor e da prática pedagógica dele seja a variável mais forte para associar
o nível de aprendizagem da criança e do jovem ao mundo tecnológico. Alguém
precisa ensinar a eles as implicações e o funcionamento daquela ferramenta.
BBC
Brasil - O aluno precisa entender de algoritmo?
Dellagnelo:
A Base Nacional Comum Curricular (documento
recém-aprovado pelo Ministério da Educação, com as diretrizes básicas de o que
deve ser ensinado nas escolas do país) tem uma competência geral que fala em
"utilizar tecnologias de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas
diversas práticas do cotidiano, incluindo as escolares, para se
comunicar".
O Cieb insistiu que "utilizar" não é suficiente. Tem de
compreender e também criar tecnologias. O aluno hoje precisa saber minimamente
como programar e entender a lógica da programação. Não é que todo muito vai
virar programador, mas o aluno tem de entender o algoritmo por trás de um
Facebook, de um Google, para compreender como a tecnologia está recomendando
coisas que ele acha mágicas: "Ah, como ele sabia que eu queria comprar
isso?" Ao entrar na internet, está se deixando rastro. Esse rastro esta
sendo cada vez mais explorado por empresas para o marketing, por exemplo.
BBC
Brasil - Inteligência Artificial é um conceito acessível?
Dellagnelo
- Sim, o aluno precisa entender o que é Inteligência
Artificial, compreender como é alimentada - alguém forneceu aquele dado, às
vezes sua própria pegada digital, seu comportamento nas redes sociais. Parece
um ambiente neutro. Como eu não vejo um interlocutor na minha frente, posso
falar qualquer coisa e a qualquer hora. A pegada digital, a reputação digital
são valores que os professores precisam ensinar para os alunos. Tem que ensinar
também a usar as redes sociais para fazer mobilizações, para fazer sua voz ser
ouvida.
BBC
Brasil - Alguns youtubers brasileiros têm cerca de 20 milhões de seguidores
entre crianças e jovens. Qual é a melhor estratégia em sala de aula para lidar
com a influência deles?
Dellagnelo
- A função do professor é ouvir o que esse youtuber
está transmitindo e dizer, se for o caso, "vamos aprofundar, vamos
discutir isso aqui". A tecnologia permite mais equidade - alunos de
diferentes regiões conseguem receber a mesma educação - e contemporaneidade.
Mas é o professor quem precisa fazer essa ponte. É papel dele ajudar os alunos
a entender esse mundo. (BBCBrasil)
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