Foi graças ao pai pedreiro que a
paulistana Thamiris Oliveira, de 20 anos, se apaixonou por construções.
Quando tinha dez anos, ela o acompanhava ao trabalho e ficava emocionada
ao ver as casas que ele fazia tomando forma - então decidiu que seria
engenheira civil.
Quando ela fez 18 anos, foi a vez do pai ficar
emocionado ao ver a filha mais nova, que estudou a vida toda em escola
pública, entrar na Universidade de São Paulo (USP). Ele estava dirigindo
quando recebeu a notícia, parou o carro e começou a chorar. "Foi uma
alegria que não dá para descrever", diz Thamiris, que hoje está no
terceiro ano da Escola Politécnica.
Histórias como a da jovem
filha de pedreiro se tornaram mais comuns na USP nos últimos anos, com
um número crescente de estudantes pobres e de classe média baixa
entrando na universidade. Graças a políticas de inclusão, a porcentagem de alunos provenientes de escola pública ingressando na USP subiu de 28,5% em 2013 para 41,8% em 2019.
No
entanto, mesmo após terem passado no vestibular, alunos de escola
pública, pobres e da periferia em geral continuam enfrentando mais
obstáculos que seus colegas de outras origens.
Muitos têm de
conciliar a pesada carga horária de estudos com o trabalho, superar a
defasagem na qualidade de ensino que tiveram, passar horas e horas no
transporte entre a periferia a USP, suportar a insalubridade de moradias
estudantis, competir por bolsas e intercâmbios com colegas que já falam
várias línguas e se enturmar em um grupo socioeconômico diferente.
E
afirmam ter de, muitas vezes, lutar contra discriminação e racismo de
colegas, professores e funcionários de uma universidade que ainda é
majoritariamente branca. A USP implementou sistema de reserva de vagas
em 2018 e o número de pretos, pardos e indígenas que ingressaram em 2019
aumentou 38% em relação ao ano anterior, mas continua longe de
representar a realidade brasileira. Esses alunos ocuparam 25,7% do total
de vagas no vestibular deste ano.
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Thamiris hoje está no terceiro ano de engenharia civil na Poli-USP |
Como é 'ser da quebrada' e estudar na USP
Criado
em uma favela na Brasilândia, zona norte da capital paulista, o
estudante de ciências sociais Thiago Torres, de 19 anos, conta que um
dos piores momentos que viveu na universidade foi bastante simbólico de
como é "ser da quebrada" e estudar na USP.
Era uma sexta-feira à
noite e ele estava entrando na Cidade Universitária para ir a uma festa
dentro do campus pelo portão mais próximo à favela São Remo, que fica ao
lado da universidade.
Assim que cruzou o portão com os amigos,
quatro carros da Guarda Universitária abordaram os jovens, que foram
obrigados a mostrar a carteirinha de estudante.
"Para mim foi bem
simbólico das barreiras que quem é pobre, da periferia, enfrenta. E se
eu não fosse aluno, não poderia entrar? A universidade não é pública?",
diz ele à BBC News Brasil.
Recentemente Thiago desabafou sobre
como é viver "entre dois mundos" em um post no Facebook. "Ver de onde
você veio e de onde as pessoas vieram, perceber que elas estão com
séculos de vantagem em relação a você e aos seus tem sido bem triste e
difícil para mim", escreveu ele no texto, que teve 51 mil curtidas e 15
mil compartilhamentos.
"Até quando vai predominar a lógica de que os
brancos com grana têm acesso às melhores coisas e o caminho do sucesso
trilhado enquanto os negros pobres vivem um verdadeiro inferno e tudo o
que conseguem é trabalhar para esses brancos?", escreveu Thiago.
Ele
conta à BBC News Brasil que quando anda pelo campus muitas pessoas o
encaram. "Muitos olham com olhar de medo - achando que eu vou roubar.
Outros tiram sarro, fazem comentários maldosos."
"No meu caso é
bem nítido (que sou da periferia) pelo meu modo de vestir. Mas faço
questão de me vestir do modo da quebrada mesmo, nesse estilo chavoso
(boné de aba larga, correntes, estilo típico de funkeiros)", diz ele.
"As pessoas de classe média não acham que alguém como eu, com meu
estilo, pode ser inteligente, pode estar nesse espaço."
Thiago
conta que as realidades são tão contrastantes que quando pisou no prédio
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas achou que "aquilo
parecia um shopping", enquanto colegas que vinham de escola particular
reclamavam "que aquilo era um horror" por causa do calor (não há ar
condicionado), das goteiras e de outros problemas de conservação.
Corrida de Obstáculos
Thiago
estudou a vida inteira em escola pública - "Faltava papel higiênico,
faltava professor, giz, tinha dias que não tinha merenda" - e relata as
dificuldades financeiras que enfrentou para chegar onde chegou.
"Teve
épocas em que a gente estava recebendo comida da igreja", conta. Hoje,
sua mãe trabalha como faxineira, e o pai conseguiu se formar na
faculdade depois de adulto - mas trabalha como atendente em um posto de
saúde.
Thiago estuda à noite e trabalha como jovem aprendiz de
manhã. Ele acorda às 5h30 da manhã e chega em casa, atualmente em
Guarulhos, meia-noite e meia. Passa cerca de 5h por dia no transporte
público. "Às vezes, eu fico o dia inteiro morrendo de sono e não consigo
nem estudar. E no ônibus eu vou de pé, superapertado, não dá pra
estudar."
"Quando se fala em inclusão no ensino superior público,
a questão do acesso é central, mas não é a única", afirma Renato
Meirelles, do Instituto Locomotiva. "É preciso reforçar políticas de
acolhimento e permanência estudantil", diz Meirelles.
Para ele, o
fato da universidade não ter sido "originalmente pensada para acomodar
quem trabalha" é um dos principais problemas dos alunos de baixa renda,
que precisam eles mesmos se manter e muitas vezes até ajudar a família.
"Eles
não podem fazer cursos integrais e não têm tempo para estudar", diz. E
também não conseguem aproveitar uma das principais vantagens da
universidade pública em relação à rede privada: o rico ambiente de
desenvolvimento extracurricular.
"A USP é muito mais do que eu
esperava, nesse aspecto", Cassia Menezes, de 24 anos, aluna do 4º ano na
Faculdade de Direito. "O melhor nem são as aulas, mas os grupos de
estudo, os projetos de extensão, os coletivos de ação social, as
militâncias políticas."
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