Os estudantes da Universidade de
Georgetown, nos EUA, estão votando se devem ou não pagar indenização aos
descendentes dos negros escravizados vendidos pela instituição no
passado.
Em 1838, a universidade jesuíta, que contava com o apoio
financeiro de fazendeiros ricos e muitas vezes recebia negros
escravizados como parte de doações, passou por momentos difíceis.
E
decidiu levantar fundos com a venda de 272 negros escravizados para
serem usados em plantações na Louisiana, em um negócio equivalente a US$
3,3 milhões.
Agora, os estudantes da renomada universidade estão votando para
o que pode ser a primeira reparação paga diretamente a descendentes de
negros escravizados nos EUA.
Os defensores da proposta argumentam
que os Estados Unidos construiram sua riqueza às custas do povo
escravizado e, nos séculos que se seguiram à emancipação, promulgaram
políticas para excluir os negros da divisão da riqueza do país.
Os
rendimentos mais baixos, as piores condições de saúde e os elevados
índices de detenção apresentados atualmente pela comunidade negra são
destacados como vestígios deste passado.
'Pagar nossas dívidas'
A
proposta prevê que todos os estudantes de graduação da universidade
paguem uma taxa semestral de US$ 27, a ser "destinada para fins de
caridade que beneficiam os descendentes", que vivem principalmente nos
estados americanos de Louisiana e Maryland.
"Como estudantes de
uma instituição de elite, reconhecemos o grande privilégio que temos e
desejamos ao menos pagar parcialmente nossas dívidas àquelas famílias
cujos sacrifícios involuntários tornaram esse privilégio possível", diz
trecho da proposta.
"Como indivíduos com imaginação moral,
escolhemos fazer mais do que simplesmente reconhecer o passado -
resolvemos mudar nosso futuro."
Melisande Short-Colomb é
descendente de uma das 272 pessoas vendidas pela Universidade de
Georgetown e se tornou aluna da instituição aos 63 anos.
"Havia
trabalho escravo, posse de seres humanos e escravidão", diz
Short-Colomb, apontando para os grandes prédios do campus, que a venda
de seus ancestrais ajudou a financiar.
Ela faz parte do grupo que
defende a proposta e está esperançosa de que "isso vai abrir um debate
em todo o país" sobre a questão das reparações.
"As reparações e indenizações são importantes para toda a América porque somos uma sociedade em pedaços", diz ela.
"Pontes estão caindo - fisicamente, emocionalmente, mentalmente - ao nosso redor, e temos que reparar a nós mesmos".
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A proposta prevê que todos os estudantes de graduação da universidade paguem uma taxa semestral de US$ 27 |
Hannah Michael, aluna do segundo ano, acredita que
todos os estudantes da Universidade de Georgetown são "beneficiários
diretos" do passado escravista da organização, independentemente da sua
história pessoal.
"Eu sou filha de dois refugiados etíopes", diz Michael.
"Meus
pais vieram para este país há cerca de 25 anos e não têm relação com o
comércio de negros escravizados naos Estados Unidos."
No entanto, ela argumenta que sua educação é "possível apenas por causa da escravidão e venda de afro-americanos".
"Nossas
aulas, as camas em que dormimos, a comida que comemos, as fundações da
escola foram criadas e mantidas pelo lucro obtido com a venda de 1838."
Michael
tem plena consciência de como a votação na Universidade de Georgetown
reflete um debate nacional mais amplo, e espera que isso inspire mais
atitudes em relação ao tema.
"[A votação] nos diz que há coisas que podemos fazer agora para beneficiar as pessoas afetadas pela história da escravidão."
"Espero que as pessoas fora da universidade vejam que é possível lidar com a difícil história da América."
'Totalmente simbólico'
No entanto, nem todos os alunos concordam com a proposta.
Hunter
Estes, que estuda política internacional, diz acreditar que a taxa é um
"valor arbitrário" e "uma tentativa de agregar uma obrigação moral a
todo o corpo estudantil".
Ele sugere que qualquer reparação deve
ser "opcional" para evitar "impor uma estrutura moral" que ele diz
"esmagar um aspecto da liberdade".
"É movido por boas intenções", diz Estes. "Mas boas intenções não podem ser o que define a política."
Ele
sugere que a universidade deve se concentrar em oferecer educação aos
descendentes das 272 pessoas vendidas, em vez de "atacar o problema com
dinheiro".
E acrescenta que é "difícil dizer" se ele foi beneficiado pessoalmente pelo histórico de venda de escravos da instituição.
"Tenho receio de aplicar um padrão de moralidade de 2019 em uma avaliação da história."
"Se ficarmos constantemente nos desculpando em relação às questões do passado, sempre encontraremos algo para nos desculpar".
Já Sam Dubke, aluno de economia internacional, está preocupado com alguns aspectos práticos da proposta.
"O valor de US$ 27,20 é totalmente simbólico", diz ele. "Não há análise ou investigação sistemática desta quantia."
Ele
também questiona como os cerca de US$ 400 mil que se espera arrecadar
no primeiro ano serão gastos, sugerindo que "não é algo que pode ser
feito por um capricho".
Além disso, Dubke sugere que a ação
estudantil deve ser dirigida ao Grupo de Trabalho sobre Escravidão,
Memória e Reconciliação criado pela universidade em 2015 para se
envolver com o passado da universidade.
"Devemos pressionar a administração da universidade a agir, em vez de contar com os estudantes para pagarem do próprio bolso".
"Os
atuais alunos não são culpados pelos pecados passados da instituição,
e uma contribuição financeira não pode reconciliar essa dívida passada
em nome da universidade", escreveu ele no jornal estudantil.
Matt
Hill, porta-voz da Universidade de Georgetown, disse à BBC que "os
referendos estudantis ajudam a expressar as perspectivas dos estudantes,
mas não criam políticas universitárias e não são vinculantes para a
instituição".
"Após um pedido formal de desculpas aos
descendentes, renomeando dois prédios e oferecendo aos descendentes a
mesma consideração nas admissões que dá aos membros da comunidade de
Georgetown, continuamos a aprofundar o engajamento do nosso campus para
desenvolver educação e programas que permitam a todos os alunos se
envolver com a história da escravidão de Georgetown ", afirmou em
comunicado.
Por que agora?
As
reparações a descendentes de negros escravizados se tornaram uma
questão importante nos Estados Unidos recentemente, uma vez que vários
candidatos democratas à presidência colocaram a proposta como parte de
suas candidaturas para a eleição de 2020.
Embora o grau de apoio
às indenizações varie entre os candidatos, o fato de a questão ter
migrado das margens para o centro da política reflete uma mudança mais
ampla no discurso político dos EUA.
William Darity Jr é professor
de política pública na Duke University, nos EUA, e um dos principais
especialistas em reparações do país.
"E uma surpresa agradável que
a conversa sobre reparações se tornou tão rica e abrangente na esfera
pública recentemente", diz ele.
"Ver vários candidatos à
presidência falando abertamente sobre o tema significa que a conversa
que estamos tendo é diferente de qualquer outra que já tivemos sobre o
assunto nos Estados Unidos."
O senador democrata Cory Booker
apresentou recentemente um projeto de lei para estudar a possibilidade
de reparações para descendentes de escravos como "uma maneira de abordar
de frente a persistência do racismo, da supremacia branca e do
preconceito racial implícito" nos EUA.
Darity diz que esse projeto de lei poderia oferecer uma maneira de analisar como as reparações funcionariam.
"Temos
um sistema judicial em que quando alguém é prejudicado... encontramos
uma maneira de atribuir valor a isso. Sempre fico surpreso quando as
pessoas dizem que não poderíamos fazer algo semelhante para os
descendentes de negros escravizados."
O parlamentar usa o exemplo
dos "40 acres" (equivalentes a 16,7 hectares ou uma área equivalente a
cerca de 16 campos de futebol) prometidos, mas nunca concedidos, aos
negros que foram escravizados.
"Eu fiz uma análise computacional
do valor dos 16 hectares de terra que foram prometidos aos negros
escravizados. Isso significaria algo em torno de US$ 80 mil para cada
americano elegível."
Darity diz ainda que "admira" os estudantes
da Universidade de Georgetown, mas tem "fortes reservas" sobre
"reparações fragmentadas" e espera que iniciativas locais como esta não
desviem a atenção da necessidade de ações nacionais.
A BBC entrou em contato com a Universidade de Georgetown pedindo mais comentários. (BBCNews)
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