
Sua mais nova publicação, O Livro dos Espíritos,
nada tinha a ver com os mais de 20 livros didáticos, de física, química
e matemática, que ele já tinha escrito e eram adotados em escolas e
universidades. Foi quando Rivail se lembrou de que, em uma das muitas
sessões mediúnicas de que participou, um "amigo espiritual de vidas
passadas" de nome Zéfiro havia dito que, na época do imperador Júlio
César, entre 58 e 44 antes de Cristo, ele tinha sido um líder druida na
sociedade celta. Seu nome? Allan Kardec.
"O recurso do pseudônimo tinha a vantagem de não expor
Rivail numa época em que, embora a heterodoxia religiosa fosse tolerada,
sempre se corria riscos", explica Mary Del Priore, doutora em História
Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de Do Outro Lado - A História do Sobrenatural e do Espiritismo
(Planeta, 2014). "Era também uma forma de proteger sua carreira
editorial, sem dar chance de retaliação por parte de instituições de
ensino religioso que tivessem adotado seus manuais".
Kardec levou quase dois anos para concluir O Livro dos Espíritos.
Em momento algum, se considerou o "autor" da obra. Na melhor das
hipóteses, era apenas seu organizador. Não por acaso, a folha de rosto
da primeira edição estampava a frase: "Escrito e publicado conforme o
ditado e a ordem de espíritos superiores". Para realizar as "entrevistas
com o além", Kardec conheceu e fez amizade com mais de dez médiuns -
termo criado por ele para designar os "intermediários" entre os vivos e
os mortos. Suas mais assíduas "colaboradoras" eram as irmãs Julie e
Caroline Baudin, de 14 e 16 anos, e Ruth Japhet, de 19.
Quanto aos "amigos invisíveis", eram incontáveis: o
filósofo grego Sócrates, o apóstolo e evangelista João, o cientista
americano Benjamin Franklin... "Por ser inaugural, considero O Livro dos Espíritos,
no formato de perguntas e respostas, a mais importante obra de Kardec.
As perguntas correspondem ao papel dele na publicação. Já as respostas
são atribuídas a 'espíritos superiores'.
Para
os adeptos de Kardec, o livro é, literalmente, 'dos espíritos'",
explica Emerson Giumbelli, doutor em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Núcleo de
Estudos da Religião (NER) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).
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Cena de filme sobre Kardec; em 1861, o bispo de Barcelona ordenou que 300 volumes do livro dele fossem queimados em praça pública |
O Livro dos Espíritos foi lançado no dia 18 de
abril de 1857 e, em apenas dois meses, vendeu todos os 1.500 exemplares
da primeira tiragem. Três anos depois, uma segunda edição, revista e
ampliada de 501 perguntas e respostas para 1.019, chegou às livrarias.
Logo, a doutrina espírita despertou a ira da Igreja Católica que
considerava a necromancia, a suposta arte de adivinhar o futuro por
intermédio dos mortos, um pecado mortal.
Por essa e outras razões, jovens médiuns eram
internadas em hospícios e adeptos do espiritismo ameaçados de
excomunhão. No dia 9 de outubro de 1861, a intolerância chegou ao ponto
de o bispo de Barcelona, Antônio Palau y Termens, ordenar que 300
exemplares da obra fossem queimados em praça pública.
Mas, apesar
dos pesares, Kardec procurava não se abater. Encontrava consolo no
relato de leitores do mundo inteiro que atribuíam a seu trabalho o fato
de não terem tirado suas vidas em momentos de desespero. "Afirmavam que
só desistiram do suicídio por terem lido O Livro dos Espíritos e entendido que a vida continua através dos tempos.
E
mais: que cada existência seria uma chance de evolução. Uma chance que
não deveríamos desperdiçar", afirma o jornalista Marcel Souto Maior,
autor de Kardec - A Biografia (Record, 2013), que deu origem ao
filme homônimo, escrito por L.G. Bayão e dirigido por Wagner de Assis.
Com Leonardo Medeiros no papel-título, Kardec tem estreia confirmada no
dia 16 de maio.
Espiritismo à brasileira
Filho
de pais católicos – o juiz Jean-Baptiste e a dona de casa Jeanne –,
Rivail começou a se interessar pelo assunto por acaso. Ouviu falar do
fenômeno das mesas girantes e, movido por curiosidade e desconfiança,
resolveu investigar. Estava convencido de que, por trás das mesas que se
erguiam do chão e se moviam em todas as direções, encontraria fios,
ímãs ou roldanas. "Só acreditarei se me provarem que uma mesa tem
cérebro para pensar e nervos para sentir", fez troça.
Em maio de
1855, Rivail saiu da casa de uma senhora chamada De Plainemaison
completamente atordoado. Não conseguira desvendar, por meio de truques
secretos ou traquitanas escondidas, o sobe e desce das mesas. Mesmo
assim, não desistiu. Passou a investigar outro fenômeno, ainda mais
intrigante: os cestos escreventes. Encaixado no fundo do cesto, com a
ponta virada para baixo, um lápis "respondia" às perguntas formuladas
pelos convidados em folhas de papel.
"Numa dessas sessões, em 30
de abril de 1856, a cesta se voltou para Rivail e, como se apontasse o
dedo para ele, o lápis escreveu uma mensagem enigmática: 'És o obreiro
que reconstrói o que foi demolido'", relata Marcel. Era a deixa para
Rivail começar a organizar o que viria a ser O Livro dos Espíritos.
Não
demorou muito para o espiritismo kardecista cruzar o Atlântico e
desembarcar no Brasil. Por aqui, Kardec conquistou inúmeros "aliados".
Dois dos mais importantes são o educador francês Casimir Lieutaud, que
traduziu para a língua portuguesa, em 1860, Os Tempos São Chegados,
a primeira obra espírita impressa no Brasil, e o jornalista brasileiro
Teles de Menezes, que fundou, em Salvador, o primeiro centro espírita do
Brasil, o Grupo Familiar do Espiritismo, em 17 de setembro de 1865, e o
primeiro periódico espírita do país, o Eco do Além Túmulo, em 8 de
março de 1869.
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Até 2002, quando morreu aos 92 anos, Chico Xavier psicografou 459 títulos - e doou os direitos autorais de todos eles, com registro em cartório, para obras assistenciais |
"Por sua inteligência aguda, bom senso extraordinário e alma
caridosa, quem merece o título de 'Allan Kardec brasileiro' é o Bezerra
de Menezes", aponta Marta Antunes Moura, vice-presidente da Federação
Espírita Brasileira (FEB), referindo-se ao "médico dos pobres" que, reza
a lenda, teria doado seu anel de formatura a uma mãe para ela comprar
remédios para o filho adoentado.
Outro nome de destaque na
consolidação do espiritismo no Brasil é Francisco Cândido Xavier, o
Chico Xavier. Em 1932, aos 22 anos, lançou seu primeiro livro, Parnaso de Além-Túmulo,
antologia de 259 poemas assinados por nomes como Castro Alves, Olavo
Bilac e Augusto dos Anjos. Até 2002, quando morreu aos 92 anos,
psicografou 459 títulos - e doou os direitos autorais de todos eles, com
registro em cartório, para obras assistenciais - e 10 mil cartas -
algumas delas chegaram a ser aceitas como prova em tribunais.
"Inspirado
na noção de santidade católica, Chico Xavier adotou votos monásticos
como modelo de conduta e espiritualidade. Assim, ele se tornou
referência moral não só para médiuns, como também para os demais adeptos
da doutrina. Essa construção do estilo brasileiro de ser espírita,
marcadamente católico, é o que chamo de espiritismo à brasileira",
explica Sandra Stoll, doutora em Antropologia Social pela Universidade
de São Paulo (USP).
O rastro de perseguição que a doutrina de
Kardec sofrera na Europa logo chegou ao Brasil. Já em 1874, o Jornal do
Comércio acusava o espiritismo de produzir loucos: "Uma epidemia pior
que a febre amarela", dizia um artigo da época. Em 1881, o bispo do Rio
de Janeiro, Pedro Maria de Lacerda, publicou um manifesto em que chamava
os seguidores de Kardec de "possessos, dementes e alucinados".
"Naquela
época, o Brasil vivia sob os ditames do Império, que tinha o
catolicismo como religião oficial. Mas, mesmo com o advento da
República, a partir de 1889, a perseguição não cessou", relata o
sociólogo e advogado Maury Rodrigues da Cruz, presidente da Sociedade
Brasileira de Estudos Espíritas (SBEE). "Os ataques sofridos não
arrefeceram o movimento espírita brasileiro. Pelo contrário.
Fortaleceram a união de seus membros em torno da defesa da liberdade de
culto e da consolidação do espiritismo no país".
Mais vivo que nunca
No
mês em que espíritas comemoram os 150 anos da morte, ou melhor, do
"desencarne" de Allan Kardec, sua doutrina tem hoje, segundo dados do
Pew Research Center de 2015, 13 milhões de adeptos no mundo inteiro. Só
no Brasil, são 3,8 milhões. Isso significa que, a cada três seguidores
de Kardec, um é brasileiro. Com isso, o maior país católico do mundo,
com 123,4 milhões de fiéis, segundo o Censo de 2010, passou a ostentar
outro título: o de maior nação espírita do planeta.
"O túmulo do
Kardec no Père-Lachaise, em Paris, é, sem dúvida, dos mais visitados. A
qualquer dia e horário, há sempre um brasileiro acendendo velas ou
depositando flores no mausoléu", afirma Reginaldo Prandi, doutor em
Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Mortos e Os Vivos
(Três Estrelas, 2012), referindo-se ao cemitério francês onde estão
sepultados, entre outras celebridades, o escritor Oscar Wilde, o músico
Frédéric Chopin e o roqueiro Jim Morrison. "A prática da caridade ajudou
o espiritismo a ganhar força no Brasil. Ainda hoje, centros espíritas
organizam bazares, recebem doações de alimentos e distribuem agasalhos
no inverno".
O sucesso do espiritismo no Brasil, onde tem mais
seguidores do que na França, pode ser explicado, ainda, pelo processo de
"religiosificação" da doutrina no país. Essa é a opinião de Célia
Arribas, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e
professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF). Se, na terra natal de Kardec, o espiritismo
tinha caráter majoritariamente científico ou filosófico; no Brasil,
ganhou status de religião.
"Ao reforçar o caráter religioso do
espiritismo, seus primeiros adeptos, oriundos de grupos socialmente
privilegiados, como médicos, políticos e advogados, viram nisso uma
forma de legitimar sua existência em solo brasileiro e escapar do Código
Penal de 1890, que estabelecia punições, como multa e detenção, para
quem praticasse o espiritismo", explica a socióloga.
Dados do
último Censo apontam que, entre 2000 e 2010, o número de espíritas no
Brasil cresceu 65%, passando de 2,3 milhões, algo em torno de 1,3% da
população, para 3,8 milhões, cerca de 2%. Mas, se o número de fiéis é de
3,8 milhões, o de simpatizantes, segundo a Federação Espírita
Brasileira (FEB), pode chegar a 30 milhões. "Muitos não se assumem como
espíritas porque são católicos ou porque não enxergam o espiritismo como
religião", explica Célia Arribas, da UFJF.
"Há também aqueles que
vão aos centros atrás de alívio para alguma aflição pontual. É o que
chamamos na sociologia de 'religião de clientela', um tipo de
religiosidade de serviço que não cria vínculos".
Mesmo tendo
crescido tanto, o espiritismo continua a ser uma confissão minoritária
no país. Em número de adeptos, está atrás de católicos (64%) e
evangélicos (22%). "São a maioria da minoria", define o sociólogo
Reginaldo Prandi, da USP. "A doutrina espírita não está preocupada em
fazer proselitismo ou converter ninguém. Está interessada apenas em
fazer o bem e praticar a caridade". (BBCBrasil)
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