O celular
 toca, a tela mostra um número estranho e a voz do outro lado reproduz 
uma mensagem automática, é assumida por algum atendente de telemarketing
 ou simplesmente dá lugar a um toque de que a ligação caiu. 
É bem
 possível que você faça parte das milhões de pessoas que em todo o mundo
 que já receberam - ou, na pior das hipóteses, ainda recebe 
cotidianamente - ligações do tipo, que em outras línguas já até ganharam
 um vocábulo próprio. Em inglês, por exemplo, são as "robocalls" e em 
espanhol, "robollamadas" - em português, seria algo como "robochamadas".
 
A definição das robochamadas varia, mas em geral estas incluem a
 incorporação de tecnologias da telecomunicação impulsionadas em anos 
recentes - como "autodialers", ferramentas físicas ou softwares que 
disparam ligações para múltiplas linhas simultaneamente; a tecnologia 
VoIP (abreviação para "Voz sobre IP"), que permite telefonar através da 
internet; os chamados "spoofers", que alteram ou escondem os números 
telefônicos que aparecem no identificador de chamadas; e ainda mensagens
 pré-gravadas. 
Não há dados oficiais e mundiais 
consolidados sobre este fenômeno recente. Mas quem trabalha com o tema -
 de órgãos de defesa do consumidor a empresas de tecnologia - garante: o
 Brasil, ao lado de países como Índia e Estados Unidos, é um dos lugares
 no planeta que mais abriga ligações do tipo.  
País assume a liderança em ranking de aplicativo
O
 Truecaller é um aplicativo de celular que identifica e registra 
ligações - e, com estes recursos, faz relatórios mundias sobre chamadas 
classificadas como "spam" por usuários e automaticamente pelo app. Estas
 chamadas incluem ligações indesejadas de telemarketing, trotes e 
golpes.  
No
 levantamento mundial mais recente, relativo ao ano de 2018 (período de 
janeiro a outubro), o Brasil apareceu em primeiro lugar no número de 
chamadas spam recebidas por usuário - 37,5 por mês, um aumento de 81% em
 relação ao mesmo período de 2017. 
Assim, o Brasil tirou a liderança do ano anterior da Índia - quando Brasil e EUA ficaram empatados no segundo lugar.
Segundo a empresa, o Truecaller tem 300 milhões de usuários no mundo - 3,3 milhões no Brasil. 
 De acordo com um comunicado do aplicativo, o Brasil 
representou uma guinada da tendência em sua região: "As ligações spam e 
de golpes estão aumentando globalmente, e a América Latina, graças à 
rápida incorporação da tecnologia móvel, é um exemplo desse fenômeno". 
"Notamos
 também que as chamadas de spam no Brasil têm uma característica muito 
particular: uma das ofertas mais frequentes é de operadoras de 
telefonia", acrescenta a empresa.
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| Em 2018, Brasil assumiu o ranking mundial de usuários de aplicativo que mais recebem ligações 'spam' | 
No ano passado, o aplicativo registrou que 32% das 
chamadas spam no Brasil vieram de empresas de telecomunicação; 36% de 
outras empresas ou campanhas políticas através do telemarketing; 20% 
foram tentativas de golpes e fraudes; 10% classificadas como "incômodos"
 (incluindo, por exemplo, trotes e assédio); e 2% provenientes de 
serviços financeiros.  
É um quadro diferente, por exemplo, do 
Reino Unido, onde a prevalência é de chamadas referentes a seguros e 
"incômodos"; dos EUA, em que as categorias mais prevalentes são as dos 
seguros e motivadas por cobranças de dívidas; ou ainda o Canadá, que 
teve quase 70% das chamadas classificadas como golpes. 
Por outro 
lado, têm predominância de chamadas de operadoras de telecomunicação e 
telemarketing, como o Brasil, países como Índia, Espanha e Itália. 
"Empresas
 de telemarketing, obviamente, têm uma estratégia clara para gerar 
receita ao buscar novos clientes em escala", escreveu por e-mail à BBC 
News Brasil Nick Larsson, diretor na Truecaller. 
A BBC News 
Brasil pediu uma entrevista com representantes das quatro operadoras de 
telefonia móvel do país - Claro, Oi, Tim e Vivo - sobre o tema, mas 
nenhuma atendeu à solicitação. Todas preferiram se pronunciar atráves do
 Sinditelebrasil (Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de 
Serviços Móvel Celular e Pessoal), entidade patronal, segundo a qual "as
 operadoras se utilizam de canais digitais, incluindo telemensagens em 
ações pontuais".
No final de março, após reunião com a Anatel 
(Agência Nacional de Telecomunicações), o órgão anunciou que empresas do
 setor apresentarão, em seis meses, um código de conduta para o uso do 
telemarketing, inibindo "possível prática abusiva e invasiva" e 
refinando "modelos de abordagem aos consumidores, ajustando horários, 
frequência de ligações e outros itens necessários". 
Segundo a representação das empresas de telefonia, 
menos de um terço das chamadas e mensagens comerciais no telemarketing 
são oriundas das prestadoras, mas o sindicato indica a intenção de 
atingir a "satisfação dos consumidores" e alinhar-se a outros países em 
uma autorregulação do setor. 
Representando a Anatel, Elisa 
Leonel, superintendente de relações com os consumidores, reconheceu que a
 reação das empresas chega após muitos transtornos aos consumidores - 
mas diz que "antes tarde do que nunca".
"Esse é um movimento de 
amadurecimento do mercado, que tem cobrado muito da Anatel desregular. A
 nossa resposta é que a gente só desregula aquilo que está resolvido. 
Então, é uma iniciativa delas (das empresas pela autorregulação) em 
relação a uma provocação que a Anatel tem feito", afirmou à BBC News 
Brasil,
Qualidade de vida do consumidor é impactada, aponta organização
Diogo
 Moyses, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), vê como
 "positiva" a iniciativa das telefônicas, mas avalia que ela é 
insuficiente para "dar conta da robustez do problema" - que classifica 
como um "martírio para os consumidores". 
"As empresas deram um 
prazo de seis meses para apresentar um código de conduta, mas a 
qualidade de vida do consumidor está sendo afetada hoje", diz Moyses, 
líder do programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec. "A 
vulnerabilidade do consumidor fica exposta desde a questão da 
privacidade, pois a obtenção de dados muitas vezes vem do comércio 
criminoso de informações, ao usuário não saber quem está ligando, não 
conseguir nem obter o número (de origem da ligação)". 
Para o 
representante do Idec, as soluções devem vir não apenas daqueles que 
participam da autorregulação, mas envolver outros atores - como as 
agências reguladoras e a sociedade civil - e inclusive empresas de 
outros setores, que também recorrem a chamadas robotizadas e spam. 
Mas, com as regras vigentes hoje, dá pra considerar a prática ilegal?
O que diz a lei
Não
 há, no país, leis ou normas nacionais diretamente voltadas para 
ligações robotizadas ou para o dito telemarketing abusivo. Mas, a 
depender da interpretação jurídica, pode-se considerar violações de 
alguns princípios mais gerais presentes no Código de Defesa do 
Consumidor ou em normas da Anatel. 
Elisa Leonel diz, porém, que 
ao menos oito Estados já aprovaram leis para a criação de cadastros de 
"não perturbe" para todos os setores do mercado, que em geral são 
geridos pelos Procons (órgãos de proteção e defesa do consumidor). Estas
 listas incluem número de telefones e celulares de pessoas que não 
querem receber ligações de telemarketing - mesmo de chamadas vindas de 
outros Estados.
Isto está disponível, por exemplo, para moradores 
do Estado de São Paulo. Segundo o Procon-SP, desde 2009, mais de 1,9 
milhão de telefones já foram cadastrados no Estado.
Empresas que 
recorrem ao telemarketing devem respeitar o cadastro - caso não o façam,
 podem ser acionadas administrativamente pelo Procon-SP e eventualmente 
multadas. 
EUA: chamadas no topo de insatisfação dos consumidores e prioridade de agência
Um
 cadastro do tipo, só que nacional, é uma das soluções mais antigas 
usadas nos Estados Unidos para lidar com o telemarketing abusivo.
O
 país conta com um registro federal chamado de Do Not Call ("Não 
ligue"), em que a população pode se cadastrar para não receber mais 
ligações relacionadas a vendas. Empresas que violarem o cadastro estão 
sujeitas a ações judiciais. Reino Unido, Canadá e Austrália têm sistemas
 parecidos.
Os EUA também têm leis federais que limitam as 
permissões de chamadas automatizadas com áudios pré-gravados e criaram 
normas para que as próprias empresas de telefonia disponibilizem a seus 
clientes ferramentas de bloqueio de certos números.
Lá, ligações 
indesejadas lideraram nos últimos anos o tipo de reclamação de 
consumidores recebidas pela Comissão Federal de Comunicações (FCC, na 
sigla em inglês; análoga à Anatel no Brasil). Segundo o órgão, o volume 
anual de reclamações sobre estas chamadas está na casa de 200 mil, cerca
 de 60% de todas que chegam à comissão. 
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| 'Notamos que as chamadas de spam no Brasil têm uma característica muito particular: uma das ofertas mais frequentes é de operadoras de telefonia', diz o relatório do Truecaller | 
 Por isso, a FCC afirma explicitamente que o combate a
 ligações robotizadas e irregulares é sua prioridade número um - pois 
estas são "na melhor das hipóteses, uma perda de tempo, e na pior, um 
golpe", segundo o presidente do órgão, Ajit Pai. Mas o órgão faz questão
 de frisar também que muitas vezes as robochamadas são regulares e 
legítimas, quando usadas por exemplo pela rede de ensino no contato com 
os responsáveis pelas crianças.
A Índia, outra "potência" das 
robocalls e do telemarketing - cujo desenvolvimento tecnológico e 
operacional, inclusive, deve muito ao país -, também viu sua agência 
reguladora publicar, em 2018, um novo conjunto de regras para conter o 
telemarketing e as robochamadas abusivas. 
Por exemplo, a 
Autoridade Regulatória das Telecomunicações da Índia (TRAI, na sigla em 
inglês) criou um sistema em que, através de diferentes códigos, os 
indianos podem bloquear comunicações indesejadas via teclado ou SMS. Por
 exemplo, se querem denunciar e impedir ligações com áudios 
pré-gravados, podem enviar ao órgão uma SMS com a mensagem "BLOCK 13"; 
ou, para ligações automatizadas, com atendimento de um funcionário de 
telemarketing, podem escrever "BLOCK 14". 
"À frente, esperamos 
ver como a regulação de 2018 será aplicada. Outro passo importante para 
garantir que os dados pessoais não vazem ou sejam vendidos e, em último 
caso, usados para enviar spam, será a promulgação de uma abrangente 
legislação sobre privacidade", explicou por e-mail à BBC News Brasil 
Elonnai Hickok, que comanda pesquisas sobre privacidade na ONG Centro 
para Internet e Sociedade da Índia (CIS, na sigla em inglês). 
Muralhas e inteligência artificial
Mas
 autoridades em todo o mundo reconhecem que é desproporcional a 
velocidade com que as tecnologias se desenvolvem e como o poder público 
responde. 
"Qualquer um pode enviar milhões de robochamadas e 
desmantelar a aplicação da lei somente com um computador, softwares 
baratos e uma conexão com a internet", escreveram procuradores dos 
Estados Unidos em uma carta sobre o assunto enviada em outubro passado à
 FCC. 
Segundo Alex Quilici, presidente do YouMail (outro 
aplicativo que oferece o bloqueio de chamadas indesejadas), o fato de os
 softwares usados nas robochamadas serem fáceis e baratos fizeram com 
que este tipo de ligação explodisse nos últimos três anos. 
"É 
simples: você pode apenas encontrar um site, colocar números de 
telefone, incluir uma gravação de áudio e apertar o botão", explicou 
Quilici à BBC News Brasil por e-mail. "Quanto mais chamadas entram (para
 os usuários), menos pessoas atendem a ligações de números desconhecidos
 - e, com isso, sistemas robotizados fazem ainda mais chamadas".
Para
 complicar, muitas chamadas automatizadas são escondidas por firewalls 
(espécie de "muralhas" nas redes de computadores para proteger a 
transmissão de alguns dados) e têm origem em lugares distantes - outros 
Estados e até outros países.
Esses circuitos transnacionais podem ocorrer, na 
maneira mais analógica, com ligações vindas de centros de telemarketing 
em outros países. Mas, explica Guilherme Marcondes, vice-diretor do 
Inatel (Instituto Nacional de Telecomunicações), a tecnologia VoIP faz 
com que ligações iniciadas na internet busquem espécies de âncoras no 
lugar do mundo mais conveniente para prosseguir com a chamada e 
conectar-se à rede telefônica tradicional. 
"No passado, cada 
linha telefônica estava associada a um hardware (equipamento físico) 
conectado à central telefônica. Era algo bem rastreável", diz Marcondes,
 que é coordenador dos cursos de engenharia de computação e de software 
no Inatel. "Hoje, posso contratar uma chamada originada na internet que 
em algum ponto vai ter que se conectar à central telefônica. E essa 
conexão pode acontecer em muitos lugares diferentes".
Para o 
futuro, a inteligência artificial e a inovação em técnicas de 
manipulação e gravação de vozes devem trazer robochamadas em novas 
roupagens. 
Mas o desenvolvimento tecnológico ocorre também no 
lado da "defesa" contra chamadas indesejadas. Nos EUA, por exemplo, um 
consórcio de telefônicas está estudando sistemas de autenticação de 
chamadas. Em outubro de 2018, o Google mostrou que também entrou na 
arena e apresentou, no lançamento do smartphone Pixel 3, um sistema de 
bloqueio de números e de envio de mensagens automáticas a emissores 
identificados pelo usuário como spam.
Se o dono do celular decidir
 marcar a chamada como spam, o emissor da ligação recebe uma mensagem 
automática dizendo: "Por favor, retire este número de sua lista de 
contatos e envio de mensagens. Obrigado e adeus".(BBC News Brasil)




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