*Rindo de mim mesmo*
Aind’ há
no mercado,
o sempre
lembrado,
empacotado,
chamado
Macarrão
Letrado.
Naquele tempo - para começo de conversa recorro à fórmula hipnótica das parábolas - naquele tempo, em dias de solstício do inverno, os velhos da família aprontavam inesquecíveis momentos para aquecer as noites frias. Vivia eu, então, ao sul, bem abaixo do trópico de Capricórnio, sob a guarda de meus avós maternos.
Desde a tenra infância, sou fã de canja de galinha. Não falo de sopa com partes carnudas da pobre ave. Para mim, canja é algo distinto. A canja da ave pobre para ser saborosa e nobre, deve ser composta por “miúdos” - partes íntimas e outras nem tanto - mais asinhas, pescoço e suas peles, mais pernas-pés amarelados de unhas aparadas, responsáveis pelo delicado sabor e pela vida cromática da iguaria, em contrapartida ao branco desmaiado do arroz, indispensável à obra d’arte.
Minha avó foi mestra em tal riscado. Em dias de macarrão de letrinhas, por mim apreciado em letras sobre a mesa e não tanto enquanto sopa, a velha seduzia-me: “Se você tomar esta sopinha vai ficar inteligente”. Rendia-me. Talvez, na vã esperança de um dia, quando nada, pudesse falar da experiência, em bate-papo como agora.
Montar letras e daí palavras na composição de um texto atraente é algo detalhista, como fazer-se canja à moda antiga. Nisso, Prima Luíza revelou-se exímia, ‘solsticiando’.
Prefaciada a sopa de hoje, aproveito “a bruma leve das paixões que vêm de dentro”, embalo as recordações acima, mais um ou outro agasalho para encarar o frio, asas à imaginação, alço voo em direção ao habitat de meus correspondentes.
Assim, se ao escrever “liberdade se consente”, sinto-me à vontade para ouvir os sopros de Éolo segredarem-me o quanto ora psicografo. Em verdade o invocara, ao manobrar um apelativo olhar rumo ao azul de Urano, filho da Noite e descendente de antigas divindades, entre elas Éter. Éter, o ar puro aspirado pelos deuses, longe de ser o ar poluído cedido aos mortais. Mitológicas premonições. Aí reside a magia dos sopros eólicos. Lástima é a mesma não se reproduzir nos atuais gigantes ventiladores de geração de energia que, de Éolo, só mantém o gentílico ‘eólica’. Deuses também têm suas limitações.
Portanto, o que ora aspiro são emanações de um ar divino, aromas evolados do apetitoso prato servido por Prima Luíza, sopa de letras rica em nutritivas e poéticas contemplações e testemunhos.
Letras! Sou cativo dos voltados ao culto do idioma, quando sem perder de vista a mensagem estética, deixam entrever flagrantes da vida real. Sinto-me tão prisioneiro, quanto todos nós – tempos de pandemia - ora nos encontramos. ‘Ergastulados’, como bem lembrou a escritora da Imperatriz Leopoldinense.
Equinócios e solstícios sempre foram, e continuam sendo, datas mágicas. Graças a elas, a raça humana do planeta Terra adorou deuses e deusas nascidos nas inclinações astronômicas dos giros ao redor do Sol. Deidades muitas perdidas no tempo, ainda enchem de inspiração nossas vidas, como ocorreu com Prima Luíza, e o fez, pelo relatar dos fatos, alentada por vapores de outra divindade, capaz de provocar espasmos criativos.
Para tanto, mulher e marido juntaram taças.
Abro um parêntese.
Não costumo usar “esposo, esposa”,
substantivos tradicionais e litúrgicos. Aprecio “marido, mulher”, contexto
laico, mais de acordo com os tempos atuais.
Acho démodé o cidadão ao apresentar a
cara-metade, empertigar-se e afirmar: “Quero ter o prazer de lhe apresentar
minha esposa” (engrossando a voz ao dizer esposa, como se a palavra
contivesse uns três circunflexos sobre a letra ‘O’).
Marido apresenta “minha mulher”; mulher
apresenta “meu marido”. Curto e grosso e estamos conversados.
Além do mais - sem ser irreverente - julgo
‘esposo’ bem adequar-se ao castíssimo carpinteiro José. José sabia ser sua
mulher, Maria - então nem lia - optante por outro DNA, mágico, para constituir
família. A velha magia, sempre presente na história da humanidade.
Fecho o parêntese.
Voltemos às taças frias.
Tim-tins para incorporar a audição ao ato - único sentido ausente nas bebidas - excursão com destino à geladeira onde, ao andar superior, acomodava impacientes amigas branquelas, tamanho P, recém-apresentadas ao casal. Imensa era a tentação pela novidade, o que induziu a dupla, em alto astral, a deixar no abandono as ‘louras holandesas’, estatura G.
Conversa vai, cerveja vem, marido e mulher,
não se aperceberam tamanho não ser documento e quanto, as amigas branquelas com
seu adocicado perfume seduziam.
Minha mulher a quem, por gaiatice, refiro-me
como Dª. Linda, nada bebe, por isso bebo mais ainda. Por mim e por ela. Assim,
sou eu quem ‘cinderela’. Ela, “Eu
avisei! Eu avisei!” Não há
casamento perfeito.
,
quando me avenho com as Devassas - injusto nome das discretíssimas damas -
consagro minha tese: ‘eterizam’ a mente.
Portanto, sem retardar o preparo da sopa nem devassar demais o passado, sigo no aprendizado de harmonizar palavras para, lá na frente, ser mestre na arte dos gostos festejados
Não se perca de vista, eu ser um pisciano
avoado e, como tal, adoro estar de bem com a vida. Só deixo de sorrir, quando a
melancolia chega sem aviso prévio. Mesmo assim, bastam alguns tim-tins
solitários com as louras ousadas, para abrandar o imprevisto impasse. Vezes
muitas, antes de ‘cinderelar’,
há tempo para captar em atos ou fatos, um esgar de humor liquefeito em
palavras, pois, tudo quanto se presencia e vive nesse “mundo de meu Deus” seria
cômico, se não fosse trágico.
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