Dois eram os vapores na Lagoa dos Patos, unindo a capital Porto Alegre à antiga cidade-porto que doou seu nome ao estado gaúcho, Rio Grande.
Inícios da década quarenta do século passado. Tal viagem era lacustre posto que à época, os caminhos de barro, tidos por estradas, cruzando fazendas, abrindo e fechando porteiras, espaçadíssimas bombas de gasolina à moda antiga, exigiam dos raros e atrevidos automóveis carregar vasilhame com combustível extra.
Havia ainda, a encarar três balsas para vencer rios ao longo do percurso. Além de tanto, era indispensável levar-se farnel para os inevitáveis lanches, e garantir refeição à sombra amiga de alguma hospitaleira árvore à beira da estrada. Eram verdadeiras aventuras, consumiam algo beirando quatorze horas, para percorrer distância via rodoviária, ora completada em pouco mais de quatro.
O primeiro automóvel de meu pai, um Vauxhall inglês - tinha eu sete anos - apareceu em 1948. Antes disso, era nos vapores – Geni Naval ou Cruzeiro do Sul – nos quais viajava-se à cidade onde meus avós maternos viviam desde tempos da Primeira Guerra Mundial.
De tais navegações, guardo algumas reminiscências. Possa ser haja sido a única e derradeira, quando meus pais, separando-se, minha mãe migrara para a casa de meus avós, comigo a tiracolo. Tais detalhes me escapam, pois, nunca foram comentados.
Mania velha e preconceituosa, jogar para debaixo do tapete fatos do simples caminhar da existência humana, sujeitos estamos, queiramos ou não, a imprevistas alterações de percurso naquilo consagrado como o modelo perfeito da convivência familiar.
Em verdade, cada um de nós é uma “procissão de fantasmas”, no meio da qual marcha a realidade, cuja plenitude nunca nos é dado saber. Quem nos ensina isso - Alexis Carrel, em sua basilar obra “O Homem, esse desconhecido” - também nos alerta, não dispormos de ferramentas apropriadas para despertar refestelos permanentes com Dona Felicidade.
Enfim, retorno aos fiapos da memória, dispersos como alvas nuvens em claros dias de ventania.
Naquela viagem, a navegação consumia cerca de 24 horas: pernoitava-se a bordo ao suave embalo das águas mansas da lagoa. Manhãzinha, para anunciar aos viajantes o novo dia, a chaminé suspirava - um silvo grave, profundo e prolongado.
Assim, atendendo ao sono volvi à infância, noite também criança, naveguei; pela vidraça da janela de meu quarto, tornei a ouvir o madrugador troar do inesquecível apito da solitária nave.
Tal foi o despertar, estado de alto astral. Afinal, na viagem noturna
revivi um tiquinho da minha infância, a bordo do vapor Geni Naval e, com distante
saudade, tornei a ouvir seu silvo grave, profundo e prolongado, como o suspiro
de quem está de bem com a vida.
Um comentário:
Meu pai viajou muitas vezes no Geny Naval. Esse barco foi transformado em petroleiro e depois desmontado.
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