Karina Arruda |
Convencer os pais não deve ter sido tarefa fácil, mas ela talvez
tenha lançado mão da notícia da pacificação nas favelas, da chancela de
cidade-sede das próximas Olimpíadas, dos vídeos na internet cheios de
luz laranja onde o sol ilumina sorrisos, olhos que brilham, esperança de
que o perigo que a cidade estampava nos noticiários é coisa do passado.
Jovens sabem ser persuasivos quando querem. Os pais renderam-se, ao
ver que o sonho da jovem americana de falar português era coisa séria.
Disfarçaram o medo, compraram a ideia e as passagens e choraram saudades
antecipadas no embarque.
Ela chegou. Encantou-se. Alugou um apê em Copacabana e via todos os
dias o pôr-do-sol no Arpoador. Postou fotos no Facebook dizendo que
lugar mais lindo não havia. Nos corredores da universidade carioca em
que fazia intercâmbio, encontrou um amor que falava francês. Começaram a
namorar. Andavam de chinelos, de mãos dadas pelo calçadão, arranhavam a
nova língua pedindo chopes gelados no balcão e tentavam, juntos,
acertar o passo nas rodas de samba, cantando alto, mesmo que errando o
refrão.
Um repertório que inspiraria uma canção da bossa nova, um livro, um
filme ou um diário bem guardado de aventuras que marcam para sempre a
vida de muita gente. Mas, na minha imaginação, é essa a história que
antecedeu o registro real de um dos crimes mais atrozes contra turistas
no Brasil, onde três homens estupraram durante seis horas uma jovem
americana de 21 anos na frente ao seu namorado francês, que também foi
seguidamente ferido com um barra de ferro em uma van em movimento.
Poucas notícias me causaram um frio na espinha tão grande. Primeiro,
pela sequência grotesca de abusos sexuais, que é para mim a maior
violação que pode ser feita a uma mulher. Segundo, pelo sofrimento do
namorado em ser obrigado a assistir, impotente, a cada detalhe da
violência monstruosa contra a companheira. E, por último, pelo
inimaginável. Quando se planeja uma viagem dos sonhos, já é difícil se
preparar para possíveis contratempos. Temer perigos é proibido. Imaginar
uma tragédia dessa natureza é inconcebível.
Viver uma experiência em um outro país nos deixa abertos e flexíveis.
Baixamos a guarda. É talvez um dos momentos mais corajosos e sensíveis
da vida de uma pessoa, quando tudo muda de lugar, quando os hábitos são
colocados à prova, quando a capacidade de adaptação é testada a todo o
momento para que o inesperado aconteça. Mas, no caso dessa jovem, o que a
esperava estava bem longe do inesperado que ela buscava.
Não consigo imaginar a dor no corpo e na alma na viagem de volta ao
seu país, no dia seguinte ao crime. O desespero dos pais recebendo sua
filha de volta, a consternação da família e dos amigos, as lembranças
revividas nos dias que se seguiram, o romance castigado pelas marcas da
violência, o luto da escolha em entrar naquela van. Eu imagino a menina
que um dia eu fui, fantasiando destinos, olhando mapas, devorando guias e
planejando com empolgação cada experiência em viagens que me levassem
para um sonho fora da minha realidade. E, nesse caso, vi, com uma
tristeza que me pesa, que sonhos que viajam tão longe nunca se lembram
do risco de se encontrar com um amargo pesadelo.
* Karina Arruda, jornalista, vive na Suiça.
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