segunda-feira, 15 de abril de 2013

Um pesadelo na cidade dos sonhos

Karina Arruda
Eu imagino uma menina. Ela falava inglês. Terminou o high school, passou para a universidade, mas, antes, queria viver uma nova experiência, aprender uma nova língua, mergulhar em uma nova cultura. Frase feita para essas coisas que nos sacodem a mente quando a gente sente que precisa fazer algo diferente. Passou dias pesquisando os programas de intercâmbio da universidade. A Europa seria um destino óbvio, a Ásia um destino cool, a América do Sul um destino excitante. Aí ela não pensou em outro país além do Brasil e seu cartão-postal, o Rio de Janeiro.

Convencer os pais não deve ter sido tarefa fácil, mas ela talvez tenha lançado mão da notícia da pacificação nas favelas, da chancela de cidade-sede das próximas Olimpíadas, dos vídeos na internet cheios de luz laranja onde o sol ilumina sorrisos, olhos que brilham, esperança de que o perigo que a cidade estampava nos noticiários é coisa do passado. Jovens sabem ser persuasivos quando querem. Os pais renderam-se,  ao ver que o sonho da jovem americana de falar português era coisa séria. Disfarçaram o medo, compraram a ideia e as passagens e choraram saudades antecipadas no embarque.
Ela chegou. Encantou-se. Alugou um apê em Copacabana e via todos os dias o pôr-do-sol no Arpoador. Postou fotos no Facebook dizendo que lugar mais lindo não havia. Nos corredores da universidade carioca em que fazia intercâmbio, encontrou um amor que falava francês. Começaram a namorar. Andavam de chinelos, de mãos dadas pelo calçadão, arranhavam a nova língua pedindo chopes gelados no balcão e tentavam, juntos, acertar o passo nas rodas de samba, cantando alto, mesmo que errando o refrão.
Um repertório que inspiraria uma canção da bossa nova, um livro, um filme ou um diário bem guardado de aventuras que marcam para sempre a vida de muita gente. Mas, na minha imaginação, é essa a história que antecedeu o registro real de um dos crimes mais atrozes contra turistas no Brasil, onde três homens estupraram durante seis horas uma jovem americana de 21 anos na frente ao seu namorado francês, que também foi seguidamente ferido com um barra de ferro em uma van em movimento. Poucas notícias me causaram um frio na espinha tão grande. Primeiro, pela sequência grotesca de abusos sexuais, que é para mim a maior violação que pode ser feita a uma mulher. Segundo, pelo sofrimento do namorado em ser obrigado a assistir, impotente, a cada detalhe da violência monstruosa contra a companheira. E, por último, pelo inimaginável. Quando se planeja uma viagem dos sonhos, já é difícil se preparar para possíveis contratempos. Temer perigos é proibido. Imaginar uma tragédia dessa natureza é inconcebível. 
Viver uma experiência em um outro país nos deixa abertos e flexíveis. Baixamos a guarda. É talvez um dos momentos mais corajosos e sensíveis da vida de uma pessoa, quando tudo muda de lugar, quando os hábitos são colocados à prova, quando a capacidade de adaptação é testada a todo o momento para que o inesperado aconteça. Mas, no caso dessa jovem, o que a esperava estava bem longe do inesperado que ela buscava.
Não consigo imaginar a dor no corpo e na alma na viagem de volta ao seu país, no dia seguinte ao crime. O desespero dos pais recebendo sua filha de volta, a consternação da família e dos amigos, as lembranças revividas nos dias que se seguiram, o romance castigado pelas marcas da violência, o luto da escolha em entrar naquela van. Eu imagino a menina que um dia eu fui, fantasiando destinos, olhando mapas, devorando guias e planejando com empolgação cada experiência em viagens que me levassem para um sonho fora da minha realidade. E, nesse caso, vi, com uma tristeza que me pesa, que sonhos que viajam tão longe nunca se lembram do risco de se encontrar com um amargo pesadelo.

* Karina Arruda, jornalista, vive na Suiça. 
Mulher 7×7 

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