segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Somos todos refugiados

É bem possível que a palavra refugiado seja a marca deste lamacento 2016 que vai se despedindo com má memória, sustos terminais, sinais de uma herança maldita e clipes inúteis.  É, até possível,  que seja mesmo o caso de um 2016xit, a moda inglesa. Talvez, também, nem seja só a falta que nos fará novos poemas do Gullar, a superlua que não dará as caras de novo ano que vem, mas a certeza que teremos mais osso duro para roer, o que pese no horizonte, sabendo que o ano começou com fogos de artifício e foi entregue com o fogo das armas, tragédias humanitárias e Aleppo.   
 
   Evidente que povo colombiano dando força a Chape; o Scully, de Clint Eastwood, em cartaz, sobre o piloto que pousou um avião no rio Hudson salvando todos os passageiros; a Lagoa Grande salva e a Rafa Gomes cantando História de uma Gata, em The Voice Kids, nos digam que as coisas não foram tão ruins. 
   É bem provável, no entanto, que este seja o ano em que tomamos consciência que em verdade, nos tornamos, todos, refugiados. Não só os que tentaram chegar a qualquer lugar do mundo, fugindo da barbárie e das mesquinharias ambiciosas dos que mandam e das grandes potencias que disputam espaço e influência, usando o terror e sendo vítimas dele, mas refugiado do cotidiano que nos legamos.  Estamos refugiados em  cotas, clubes, religiões, discursos, minorias, grupos de watts app, faces, partidos, comportamentos. Refugiados pelas grades reais – que tentam nos proteger da violência física-, e grades imaginárias- que tentam isolar os diferentes-, como se apenas em nossas escolhas houvesse certezas e razões e fossemos movidos- ou reduzidos-, a intolerâncias e aniquilamentos. 
 
   Este foi o ano que um comercial mostrou que presidiários passam mais tempo livres nos banhos de sol do que nossos filhos, refugiados em redes sociais, jogos eletrônicos, condomínios auto-suficientes. E o ano que tivemos a certeza que estamos nos refugiando na solidão eletrônica, para não nos abandonarmos ao amor, para não abrirmos mão de algum direito pelo outro, pedindo asilo nas relações de curto prazo que não exigem renúncia, nem esforço, mas nunca alcançam a glória de um amor realizado. 
  
   Foi o ano em que a corrupção endêmica nos escandalizou, dilapidou, apartou, mas agora, que estamos  concluindo o bota-fora deste ano fuleiro, talvez seja a oportunidade de nos revermos, de romper o rancor cotidiano, antes que sua erva dilacerante se espalhe, e abraçarmos os amigos, fazendo as condescendências necessárias; de beijarmos a quem amamos como se houvesse intermináveis amanhãs, como se ainda fosse o primeiro; de alimentar os filhos de liberdade e dever filial; e concedermos, então, o visto de permanência ao melhor de nós mesmos, como se fosse o derradeiro refugiado. (Publicado no Tribuna Feirense)

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