* Ocupações *
Quando chove
aquela chuva miúda,
insistente, lágrimas de prantos inesperados, não deixo de cumprir minha
cartilha ocupacional: ir ao sítio à cata de movimentar o corpo.
Hoje, ao primeiro bocejo matinal,
apurei ouvidos para a chuva esbatendo-se nos janelões de minha morada, casa
quase tão velha quanto a noite a se despedir de mim. Domicílio de muitas vidas
- data de 1928 –, é propenso a pingos d’água no amadeirado forro, alertas da
madrugadora chuva.
Em um primeiro momento, bateu forte a
vontade de aquietar-me ao leito aquecido pelas horas ali passadas. O poder do
hábito, todavia, sobrepujou-a.
Mulher, ao sono dos justos; café, ao
janelão da cozinha; dia, ao abandono de celestial cinza-chumbo.
Fazer o quê? Mil coisas. Tirante
exercitar corpo, curtir sossego, desfrutar livros, são inúmeros os afazeres em
vivenda voltada ao lazer meio a ampla área verde.
Qual a razão para estarmos em
permanente atividade?
Tudo se inicia na infância, quando nos
educaram a nos manter ocupados; implícita, a condenação do paraíso: “ganharás o
pão com o suor de teu rosto”, lenda perpetuada em palavras da velha avó:
“Menino, vá procurar o que fazer!”.
Ao brincar, aprendíamos. Crescidos,
éramos identificados pela atividade exercida: Fulano do Hospital, Beltrano do
Correio, Mengano do Bazar. Nosso enquadramento no figurino do mundo, organizado
ao redor do valor produzido pelo trabalho.
Belo dia, somos levados a pendurar
chuteiras. Extinta a ocupação laboral ou outra, com geração de renda ou não,
muitos se convertem em vítimas de alterações emocionais e passam a enfrentar
sentimentos antagônicos, conflitantes. Viver parece-lhes haver perdido a razão,
pelo sumiço do circo com os espetáculos assegurados pela vida profissional.
A ocupação confere significado à vida e
passa a ser necessidade humana, por isso em tal caminhar jamais estacionei.
Mudei de cidades, estabeleci outros laços, comecei vidas novas. Aposentado,
voltei-me para tarefas das quais, até então, passara ao largo ou que exercera
por dever de ofício. A labuta rural distante, vários empregados, busquei
estímulo para mandá-los às favas. Em seu lugar, plantei sítio quase colado à
casa onde vivo. Às canetas - cúmplices em cartas, ofícios, memorandos, tempos
da labuta pela sobrevivência – houve por bem nomeá-las coautoras.
Longe de mim, a ideia do ócio contumaz.
Quando nos damos por satisfeitos, deixamos de produzir sentidos, interesses,
ambições, curiosidades, amizades. Tudo se torna opaco, secundário, insípido,
sem graça, distante. Ficamos esquecidos até de nós mesmos, inoperantes ante o
binômio tempo-espaço.
A esta altura, acode-me verso do poeta
curitibano Paulo Leminski, “pelos caminhos que ando, um dia vai ser, só não sei
quando”. Quando, sem esperar, seremos lançados ao precipício aonde a luz não
alcança. Após a escuridão absoluta, se evocados, sê-lo-emos por nossas
(ocup)ações em proveito próprio ou de terceiros.
Por certo, ao agir física e mentalmente
nos apropriamos da vida e descobrimos enredos, funções, utilidades. Ao usufruir
experiências diversificadas, redesenhamos e perenizamos nossa história.
Por tudo isso, além de outros misteres,
vivo a desafiar o tempo enquanto a frasear insisto.
Até, pois, as vindouras frases.
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