* Escola de Samba Vida *
Foi chegar ao sítio, cedinho, para ela cair de um céu que amanhecera
lindo. Repentina, sequer teve a gentileza de permitir, incólume, eu
atravessasse o portão da entrada. Ao constatar ser impraticável a habitual
rotina resolvo, ao marulhar das águas despencadas pelo beiral das telhas vãs do
avarandado, transformar a chuvosa manhã em letras.
Desloco
abstrato olhar em direção a nada, gesto involuntário ao revirar subterrâneos da
memória no propósito de dar vez e voz ao escrever.
Estaciono
ao sambódromo onde algumas alegóricas impertinências-mimos da senilidade
arriscam passos para o ocasional desfile na pista de minha existência. Por ser
dia de ensaio, só aparecem Catarata, Sarcopenia ¹ e Alas
do Além.
Ao
acomodar-me na arquibancada, gatos, micos e galinhas, viventes destas plagas,
somem por encanto; escafedem-se da borrasca em cantos, árvores, poleiros.
Estou, pois, literalmente só. Só é força de expressão: eu e a chuva, a chuva e
eu.
Contíguos
ao sítio, dois postos de combustíveis e seus bares. Situam-se em lados
contrários, daqui apartados, apenas, pelas vias públicas. Neles, muno-me da
gélida bebida ouro-ensolarada - alvo, denso e espumoso colarinho -, companhia
em transbordante copo alto e cônico.
Pronto!
Sinto-me na plateia como se em camarote estivesse.
Alegre
sensação vem lá de dentro, do lado esquerdo do peito ao vislumbrar a turma da
velha-guarda, antecedida pela serelepe Sarcopenia - ao balizar acenos, mil ademanes e trejeitos -
para neutralizar incômodos provocados pela ferrugem do tempo nas articulações
dos mais idosos.
Mais
adiante, a porta-bandeira Catarata, anuviadora
da nossa visão, desfralda o pavilhão da escola em rodopios de olhares em
vertigem. À sua frente, Alas do Além,
(des)carinhosa alcunha dada ao mestre-sala Aneurisma
pelo pessoal do samba.
Tais
(im)pertinentes foliões, amantes de cabeças nevadas, deram-me azo-drone para
sobrevoar ensaios momescos em terra, mar de outrora, na qual vivo.
Catarata desfila comigo. Em meus olhos,
menina-moça ainda, hormônios à flor da pele, aguarda seu desvirginar, o dia de levá-la
em casamento ao sacerdótico laser. Que o ateste o único cubano (sobre) vivente
nestas bandas, Arturo Toraño, 86, tio do finado bruxo-charuteiro Félix
Menendez; Catarata, velha e madura,
foi expulsa de um de seus olhos como o foi Eva, do Paraíso. Arturo, entre os
íntimos Artulitro, face o compulsório repouso ao lar, preocupa-se com
subsequente investida no outro olho. Este, tanto quanto o primeiro, maltratado
pelo indivíduo vulgo Glaucoma,
impõe-lhe diários cuidados e colírios.
Agora,
para não me alongar em demasia - a tempestade persiste - volto aos gatos.
Surgem do nada, barrigas a roncar, miam e se contorcem em minhas pernas,
reclamam a hora de alimentá-los - compromisso diário inadiável.
Assim,
não me aprofundarei nas imprevisíveis intervenções cerebrais pelo mestre-sala Alas do Além. Por ora, posso adiantar, no sambódromo daqui,
a bateria da Escola de Samba Vida tem a cordial harmonia cadenciada pelos
acordes de medicação redutora da viscosidade sanguínea nas veias.
O
mal da memória é ter olhos às costas.
Feliz
seria, caso olhasse para a frente e visualizasse os futuros ensaios.
Assim,
em vez de a despedida ser Até Breve, em cega convicção, poderia transformar-se
em Até Sempre!
1.
Sarcopenia – Termo médico,
ainda não abonado nos dicionários, mas localizável no Google. Significa perda
de força e massa muscular em decorrência do
envelhecimento do organismo.
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