domingo, 24 de abril de 2022

 

* Escola de Samba Vida *

   Foi chegar ao sítio, cedinho, para ela cair de um céu que amanhecera lindo. Repentina, sequer teve a gentileza de permitir, incólume, eu atravessasse o portão da entrada. Ao constatar ser impraticável a habitual rotina resolvo, ao marulhar das águas despencadas pelo beiral das telhas vãs do avarandado, transformar a chuvosa manhã em letras. 

Desloco abstrato olhar em direção a nada, gesto involuntário ao revirar subterrâneos da memória no propósito de dar vez e voz ao escrever.

 Estaciono ao sambódromo onde algumas alegóricas impertinências-mimos da senilidade arriscam passos para o ocasional desfile na pista de minha existência. Por ser dia de ensaio, só aparecem Catarata, Sarcopenia ¹ e Alas do Além. 

Ao acomodar-me na arquibancada, gatos, micos e galinhas, viventes destas plagas, somem por encanto; escafedem-se da borrasca em cantos, árvores, poleiros. Estou, pois, literalmente só. Só é força de expressão: eu e a chuva, a chuva e eu. 

Contíguos ao sítio, dois postos de combustíveis e seus bares. Situam-se em lados contrários, daqui apartados, apenas, pelas vias públicas. Neles, muno-me da gélida bebida ouro-ensolarada - alvo, denso e espumoso colarinho -, companhia em transbordante copo alto e cônico.

 Pronto! Sinto-me na plateia como se em camarote estivesse.

 Alegre sensação vem lá de dentro, do lado esquerdo do peito ao vislumbrar a turma da velha-guarda, antecedida pela serelepe Sarcopenia  -  ao balizar acenos, mil ademanes e trejeitos - para neutralizar incômodos provocados pela ferrugem do tempo nas articulações dos mais idosos.

 Mais adiante, a porta-bandeira Catarata, anuviadora da nossa visão, desfralda o pavilhão da escola em rodopios de olhares em vertigem. À sua frente, Alas do Além, (des)carinhosa alcunha dada ao mestre-sala Aneurisma pelo pessoal do samba. 

 Tais (im)pertinentes foliões, amantes de cabeças nevadas, deram-me azo-drone para sobrevoar ensaios momescos em terra, mar de outrora, na qual vivo.

 Catarata desfila comigo. Em meus olhos, menina-moça ainda, hormônios à flor da pele, aguarda seu desvirginar, o dia de levá-la em casamento ao sacerdótico laser. Que o ateste o único cubano (sobre) vivente nestas bandas, Arturo Toraño, 86, tio do finado bruxo-charuteiro Félix Menendez; Catarata, velha e madura, foi expulsa de um de seus olhos como o foi Eva, do Paraíso. Arturo, entre os íntimos Artulitro, face o compulsório repouso ao lar, preocupa-se com subsequente investida no outro olho. Este, tanto quanto o primeiro, maltratado pelo indivíduo vulgo Glaucoma, impõe-lhe diários cuidados e colírios.

 Agora, para não me alongar em demasia - a tempestade persiste - volto aos gatos. Surgem do nada, barrigas a roncar, miam e se contorcem em minhas pernas, reclamam a hora de alimentá-los - compromisso diário inadiável.

 Assim, não me aprofundarei nas imprevisíveis intervenções cerebrais pelo mestre-sala Alas do Além.  Por ora, posso adiantar, no sambódromo daqui, a bateria da Escola de Samba Vida tem a cordial harmonia cadenciada pelos acordes de medicação redutora da viscosidade sanguínea nas veias.

 O mal da memória é ter olhos às costas.

Feliz seria, caso olhasse para a frente e visualizasse os futuros ensaios.

Assim, em vez de a despedida ser Até Breve, em cega convicção, poderia transformar-se em Até Sempre!

 1.        Sarcopenia – Termo médico, ainda não abonado nos dicionários, mas localizável no Google. Significa perda de força e  massa muscular em decorrência do envelhecimento do organismo.



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