terça-feira, 5 de abril de 2022

Ilusão

 Segunda( margem de erro do Datafolha) é dia de minicrônicas

Apenas a adivinho, enquanto almoço, na mesa em frente. Os olhos são oblíquos e acesos. A boca é catedral. Só para devotos. Carnívora. Exige distância segura. Ou lastro. O corpo é de aprimoramento milenar. Ela tem vícios. Não estou entre eles. Mastigo. Ela engole. Ela devora. Eu sobrevivo. Ela não existe. Mas, se existisse, nada mudaria. Ainda seria só ilusão.
Biografia
Tenho dores de longa permanência e apenas analgésicos de ocasião!
Estrangeirismo
Tenho dias de solidão. Não a solidão dos sozinhos, nem dos que andam nos rebanhos avessos, mas a dos exilados na própria vida.
Bela, recatada, do lar
Amor novo, dessas conquistas que eriçam o ego. Ele, mais velho. Arrumou o lar para a bela morar. Enfim, era o dono do mundo. E que mundo.
- Me ama?
- Claro que amo, seu bobo. Aproveitando, queria te pedir uma coisa
- Pede que dou, meu doce.
- Ah, amor.... Queria propor tu pagar o telefone, aluguel, luz, funcionária. E eu garanto que se tu pagar, na hora que tu chegar quem tiver aqui sai. Seja quem for, sai.
Não pagou para ver!
Escusa
-Te quero nua. A carne exposta, pelos em ereção. Habitar entre tuas coxas para a redenção de teu cio. Ser teu pirão, teu desterro. O sal e vinho de tua carne e suor. Tua indecência e milagre. Inocência e delírio. E que importa se só eu te cuido? Se sirvo a comida em tua boca e te ensino a ser melhor e amar de mais largura. Se te faço humana e real; deusa, sem imagem ou semelhança. Se eu, apenas eu, acaricio teus olhos com palavras de amor e faço de tua forma a curva exata de minha retina?
-Lugar de doido é no hospício. Quem gosta de devoção é santa. Eu não sou nem um pouco! Fui.
Toda maneira de amar
Escrevia cartas de amor. Muitas. As mais pungentes. De uma profundidade que só é capaz quem se entrega ao sentimento sem recusas, ou receios. Em umas falava da ternura das crianças todas sujas do leite da lata descoberta no armário. E da menorzinha que tinha dores de ouvido. Noutras, confessava que o ritual do corpo dela dançando sobre o dele era como se todos os meridianos trocassem de posição para que ambos tivessem uma única geografia. Em algumas, manifestava medo de morrer antes dela para que não ficasse sozinha sofrendo e sem ter quem colocasse água a noite na cabeceira de sua cama. Foram descobertas na gaveta do criado-mudo quando acharam seu corpo no apartamento. Nenhuma tinha destinatário.
Imagem: Juracy Dorea


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