* Fumaças da infância *
A casa de meus avós maternos tinha um daqueles quintais que não voltam mais. Passados mais de setenta anos e, coisas da terceira idade, as reminiscências afluem com clareza, fazendo parecer tudo tivesse acontecido ontem.
Varais com roupas sempre penduradas. Peças muito brancas, alvejadas com anil. Um galinheiro sempre em produção de ovos e pintinhos. Um galo madrugador. Grama e capim nativo onde eram escondidos os “ninhos” na festa da Páscoa. Umas tantas folhas de zinco amparadas por pés toscos de madeira, área reservada para corar as roupas ensaboadas, antes da lavagem final. Não havia alvejantes a base de cloro. A velha “QBOA”, precursora dos ditos, surgiu no Sul, acho ter sido em 1951, numa campanha de marketing majestosa. Pequenos aviões sobrevoavam a cidade, descrevendo no espaço, com fumaça, em letras gigantes a palavra “QBOA”. Inesquecível.
A casa enorme, na cor sempre cinza, tinha assoalho de madeira crua, branco de tantas vezes escovado, protegido corredor afora, por um floreado tapete de linóleo, espécie de ‘plástico’ da época. A água era encanada, mas a iluminação deficiente. Não tínhamos chuveiro elétrico. E a geladeira. Ah! A geladeira era algo parecido a um cofre, daqueles redivivos em nossa memória ou em museus. Os vendedores de gelo em barras, os geleiros, passavam regularmente para nos reabastecer. Assim como o leiteiro e o padeiro, os quais todos os dias, deixavam à porta da casa seus produtos. Ninguém mexia.
Nosso gato chamava-se Secretário. A cadela, pé duro pequena, ágil e branca, atendia por Pombinha. Quando Pombinha morreu, foi um “auê”, com direito a enterro em um dos cantos do quintal, envolta em pano tão branco quanto ela. Depois, flores foram plantadas sobre seu ‘túmulo’. Quanto a Secretário, não recordo sua desaparição. Mas, e isso foi muito divertido, um dia, o bichano que era amarelo, apareceu com os pelos todos verdes, endurecidos pela areia na qual se espojara, tentando livrar-se da malfadada tinta. Sobreviveu.
Tínhamos também – o xodó de meu avô – um curió engaiolado e cantador. A gaiola, à noite era pendurada dentro do banheiro. Os mosquitos eram combatidos com espirais Boa Noite. Certo dia o progresso trouxe o inseticida “Super-Flit”, propelido por uma bomba aspersora. O velho, faceiro e desavisado das propriedades letais da novidade, borrifara a casa toda. O banheiro inclusive. Dia seguinte amanhece o passarinho, morto e espichado. Foi outro “arerê”; uma das raras vezes que testemunhei um arranca-rabo entre meus avós, casados que foram até a morte. Amavam-se à moda antiga.
Ele, ferrenho flamenguista dos tempos
do treinador paraguaio Fleitas Solich, ouvinte cativo da Rádio Tamoio, tomador
de chimarrão aos fins de tarde, ouvindo sintonizado na “Ave-Maria” de Júlio
Louzada. Para quem não sabe, à época, tal programa era líder de audiência. O
Brasil todo escutava seus conselhos matrimoniais, tendo sido inspiração para
uma marchinha carnavalesca.
“A mulher do meu maior amigo
me manda bilhetes todo dia
desde que me viu, ficou apaixonada
me dá um conselho, seu Júlio Louzada’”
O velho tinha um cacoete, marca registrada dos momentos seus, assim como os charutos são marca registrada dos momentos meus. Com a unha do polegar da mão direita pressionava a dentadura superior para, a seguir, articulando o maxilar, bater por duas vezes contra a dentadura inferior. ‘Crac-crac’’, ‘crac-crac’.
Não bebia. Ao redor dos cinquenta anos abandonara o hábito de fumar seus cigarros feitos à mão. Fumo desfiado, envolto em papel seda, marca “Colomy”, desses que a rapaziada atual usa para seus ‘baseados’.
Já minha avó, esta sim, destemperada verbalmente, apreciava vermute tinto “Cinzano”. Guardava a garrafa na parte inferior da cristaleira, na sala de visitas.
Como meninos tudo descobrem, belo dia às escondidas, enchi um copo, ingerindo tudo de uma só feita. Foi a primeira e última vez que bebi vermute em minha vida. Ainda lembro, cabeça rodando, rodando, vômitos inacabáveis, ajoelhado com a cara metida na latrina. Sem nada reclamar, pois se o fizesse “o pau comia”.
Ainda não tinham lá chegado os colchões de mola. As molas eram as da própria cama, sob uma esteira de arame. Boas camas eram as da marca “Patente”. Os colchões, palha ou crina de cavalo, envoltas em tecidos de chita multicolorida. Com o passar do tempo, endureciam-se a mais não poder.
Para coisas rápidas, a fervura do leite ou da água para o chimarrão, usava-se um fogareiro de pressão. Tais fogareiros, da marca “Primus”, lá no Rio Grande, estavam em todos os lares. Além do querosene como combustível, demandavam uso de álcool para aquecer o bico injetor ao qual chamávamos de ‘ouvido’. Volta e meia tinha-se que desentupir o ouvido com uma agulha própria e quando a ela quebrava lá dentro...
O fogão era a lenha, fornecida por lenheiros, em ‘achas’ com cerca de um metro. Quanto trabalho para cortar, com a machadinha, tais achas em três pedaços... Quando o vento refluía - lembremos que no Sul sopra o famoso ‘minuano’ - haja fumaças na cozinha!
Fumaças que agora surgem, misturando-se com as de meu charuto.
Mágicas fumaças. Fumaças da infância.
Hugo A. de Bittencourt
Carvalho,
economista, cronista, ex-diretor das fábricas de charutos
Menendez & Amerino,
Suerdieck e Pimentel,
vive em São Gonçalo dos
Campos – BA.
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