sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O Rei imortal

Vez por outra a humanidade pare um gênio. Um deles se despediu hoje deixando o mundo – eu, inclusive- emocionado. Alguns tentarão medir sua performance enumerando total de gols, assistências, títulos; outros inventarão poréns na tentativa infame de reduzir sua majestade e cairão fulminados como zagueiros driblados inapelavelmente por Pelé. Ele é rei porque era perfeito em todos os fundamentos - velocidade, salto, drible, mente, cabeceio de olhos abertos -, massacrante na busca da meta alheia, fera acuada que reagia por qualquer ameaça de derrota. Tudo isso sem a megaciência que rodeia a formação de um atleta atualmente. Celebridade sem arrogância, fenômeno individual sem desprezo ao coletivo, símbolo de chuteiras com perfeita intimidade com as passarelas da fama. Ao elevar o futebol dos seus rudimentos à apoteose a arte de Pelé abriu portas, destrancou universos, inaugurou mercados, deu status a um país. Todos, depois dele, lhe são devedores da dimensão e encantamento que sua mágica habilidade conferiu ao futebol. E só isso já seria uma obra monumental.


Ninguém foi tão universal, curvou reis, rainhas, papas, presidentes, famosos, como ele. Mas tudo isso são molduras, composições ao redor do maior maestro da bola de todos os tempos. Dos já existidos e dos por existir. O que há em Pelé, para ser lembrado, é aquele instrumento bárbaro e incomparável, implacável, terreno e divino, capaz de na mesma conjunção arruinar adversários e erguer vitórias para os seus: o talento inigualável para inventar caminhos- muitos, nunca antes navegados- para o gol. A bola fez de Pelé seu peregrino de devoção.
Nunca houve quem matasse a bola no peito como Pelé, pois ali era o regaço natural dela, a estação de embarque rumo às redes. Nunca houve quem imaginasse o nunca imaginado como ele fazia com ela- em eterno galanteio- para executar o drible como uma dança na ponta das sapatilhas diante de um touro enfurecido. Pelé extirpou o pueril do jogo em nome dos torcedores extasiados.
Guardaremos - órfãos que somos desde que parou de jogar - o chute do meio campo para encobrir o goleiro adiantado, o fenomenal, fenomenal, drible de corpo no goleiro uruguaio como a tese completa de uma obra- a humilhação da criação no maior lance do futebol de todos os tempos. Sim, o lance não foi gol, para não tirar a beleza bruta, visceral, definitiva, do gênesis. Pelé, mais uma vez, digitava poemas com os pés.
Não há lugar, portanto, para o Rei morrer enquanto uma bola – de meia, de plástico, de couro- correr nos pés sonhadores de um jogador, mas o Criador, se tiver bom senso, deve estar preparando alguma várzea lá no céu para aprender como se faz com sua criatura. Vá em paz, meu Rei.

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