A melatonina, substância conhecida por sua função
de induzir o sono, não tem registro no Brasil como medicamento. No entanto,
pode ser encontrada desde 2017 em farmácias de manipulação após uma decisão
judicial contrariar resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária) e autorizar sua importação. Seu consumo tem sido considerado
excessivo por especialistas, que apontam os riscos de efeitos colaterais.
"É muita gente tomando e muito médico
prescrevendo", afirma José Cipolla Neto, professor de fisiologia no
Instituto de Ciências Biomédicas da USP e pesquisador sobre os efeitos
fisiológicos e mecanismos de ação da melatonina.
Trata-se de um hormônio naturalmente produzido pela
glândula pineal, uma pequena glândula endócrina localizada próxima da região
central do cérebro. O papel mais comum da melatonina é sinalizar para os órgãos
humanos que a noite chegou e preparar o organismo para adormecer. Por isso, é
comumente usada por insones para melhorar a qualidade do sono.
Mas a substância também tem papel no controle da
ingestão alimentar, na síntese e na ação da insulina nas células, entre outros.
Por seu efeito variado, o hormônio caiu no gosto de pessoas em diversos países.
Na internet, é ofertado para auxiliar no
emagrecimento, no combate ao diabetes, no controle de enxaqueca e até mesmo na
proteção contra os danos do mal de Alzheimer - embora não haja consenso
científico sobre esses supostos benefícios.
Apesar de necessária ao organismo, a substância tem
contraindicações. De acordo com a Anvisa, "há riscos associados à
utilização da melatonina que não podem ser ignorados": o consumo de
medicamentos contendo a substância pode causar inchaço da pele, boca ou língua,
perda de consciência, depressão, irritabilidade, nervosismo, ansiedade, aumento
da pressão arterial e função anormal do fígado, entre outros problemas.
Abuso
Mas os possíveis efeitos negativos do consumo do
hormônio não espantam interessados. Somente nos Estados Unidos, onde o produto
é vendido como suplemento alimentar e pode ser encontrado em grandes
supermercados, pelo menos 3 milhões de pessoas consomem a substância
frequentemente.
De acordo com estimativas do Centro Nacional para
Saúde Complementar e Integrada do governo americano, o uso de melatonina mais
que dobrou entre 2007 e 2012, mesmo com a ausência de informações suficientes
sobre seus efeitos no longo prazo nem consenso sobre sua eficácia como indutora
do sono.
No Brasil, a Anvisa diz não ter dados de consumo ou
de venda. A Associação Nacional de Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag), que
responde pelas farmácias de manipulação, disse que também não tem estimativas.
Para Cipolla Neto, o cenário é de uso em excesso e,
em alguns casos, de abuso. "Nos EUA tem muita gente tomando
indiscriminadamente, o que é uma tragédia, e nós estamos indo para esse mesmo
cenário aqui", diz. Segundo ele, a liberação de um medicamento nacional
ajudará a Anvisa a ter mais controle sobre o consumo.
"A questão é criar (a percepção de) que não é
uma balinha e que precisa ser administrada de forma adequada. Do contrário,
pode trazer consequências sérias", afirma.
Com receita
No Brasil, pacientes
podem comprar formulações preparadas pelas farmácias de manipulação, desde que
com receita médica. De acordo com a Anfarmag, os remédios manipulados podem ser
preparados em cápsulas ou em formas farmacêuticas líquidas. Não há padrão para
as doses, que são definidas pelos médicos caso a caso. Desde 2017, esses
estabelecimentos compram o insumo farmacêutico ativo da empresa Active
Pharmaceutica Ltda. - ME, que vem importando a substância para o Brasil após
vencer ação contra a Anvisa e conseguir a liberação de maneira judicial.
Em nota, a
Anvisa disse que resolução do órgão proíbe "a importação e comercialização
de insumos farmacêuticos destinados à fabricação de medicamentos que ainda não
tiverem a sua eficácia terapêutica avaliada" pela agência e que "não
é possível comercializar melatonina como insumo farmacêutico ativo no
Brasil".
Questionado sobre a atividade da Active
Pharmaceutica Ltda. - ME, o órgão não respondeu se recorreu ou se irá recorrer
da decisão.
De acordo com a
agência, medicamentos só recebem registro no país após ensaios clínicos
comprovarem sua segurança e eficácia. No momento, pelo menos um laboratório
brasileiro faz ensaios clínicos com a melatonina.
Em agosto de
2016, o Aché Laboratórios Farmacêuticos recebeu o aval da agência para fazer
testes com o fármaco. Questionada sobre quando espera submeter resultados a
Anvisa e se espera desenvolver um produto comercial a partir dos estudos, a
empresa não respondeu.
Indicações e riscos
A melatonina
começa a ser produzida pelo organismo por volta das 20h, e uma das primeiras
sensações que provoca é a de sono. Seus efeitos, contudo, também são sentidos
no metabolismo, que se modifica para entrar em jejum; no sistema
cardiovascular, que irá reduzir a pressão arterial; e na temperatura corpórea,
entre outros, para o corpo adentrar o sono.
Porém, se
tomada em excesso e fora do horário de produção natural pelo organismo, pode
desencadear doenças crônicas, como diabetes. "A quantidade que precisa ser
administrada para o paciente no começo da noite não pode ser grande o
suficiente para permanecer (no organismo) durante o dia. Do contrário, pode
trazer resistência insulínica pela manhã para o indivíduo, o que significa
iniciar o desenvolvimento de um quadro diabético", explica Cipolla Neto.
Uma das
indicações comuns da melatonina é para idosos. O envelhecimento reduz
naturalmente a produção da substância e, nesses casos, é recomendada a sua
reposição. "Após certa idade, a glândula pineal reduz a produção de
melatonina, às vezes até 20% do que quando jovem", afirma o médico.
No entanto,
pessoas jovens vêm usando o medicamento cada vez mais cedo, em parte para
combater a insônia crescente, exacerbada pela exposição prolongada a
equipamentos eletrônicos. "A produção normal de melatonina só existe em
condição de noite escura", explica.
Porém, a
presença da luz azul em celulares e computadores sinaliza ao organismo que
ainda é dia e, com isso, pode atrasar a produção do hormônio, gerando
dificuldades para dormir. "A sociedade está ficando acostumada a isso, com
pessoas reduzindo a produção de melatonina."
Pesquisa
Ao mesmo tempo,
na USP de Ribeirão Preto, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Ciências
Farmacêuticas estuda outras aplicações para a melatonina. Uma das linhas de
pesquisa é o uso do hormônio em doses terapêuticas para evitar lesões
cardiovasculares em pacientes portadores da doença de chagas.
O mal é
transmitido a partir do contato com as fezes dos insetos vetores, conhecidos
como "barbeiro", e pode virar uma condição crônica. A consequência
mais grave são lesões no coração, causadas pela resposta imunológica do
organismo - as células de defesa agem de maneira intensa para exterminar o
parasita causador da doença, mas também machucam o órgão.
"A
melatonina age nas nossas células brancas e promove resposta inflamatória
potente", explica José Clóvis do Prado Júnior, professor-associado do
Departamento de Análises Clínicas Toxicológicas e Bromatológicas da faculdade.
A substância
também induz uma resposta imunológica anti-inflamatória e ajuda a proteger o
coração na fase crônica da doença de chagas, explica o pesquisador.
"Fizemos controle de paciente chagásico com e sem melatonina. Naqueles que
receberam a melatonina, os marcadores de lesão cardíaca mostravam lesões menores",
diz.
O estudo foi
feito com animais e testes clínicos com humanos devem ser feitos em breve.
Prado Júnior espera que pesquisas como a sua, que comprovem os benefícios da
melatonina, auxiliem na liberação da substância no país. "Se essas
pesquisas mostrarem benefícios no paciente chagásico, acredito que a Anvisa irá
liberar."
Para o pesquisador, ainda há muito a ser descoberto
sobre o hormônio, alvo de ensaios entre médicos gregos ainda no século 1.
"A
melatonina é quem regula tudo, a hora que cada hormônio deve entrar em ação.
Filósofos antigos (Descartes) achavam que a glândula pineal era a sede da alma
humana porque ela que conduzia os ritmos do organismo. E é ali que está a
produção da melatonina." (BBCBrasil)
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