quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Acalanto aos que amam

    
Queria poder escrever um texto bonito que fosse como uma garrafa de náufrago lançada as marés, que resgatasse os que amam em vão, os perdidos de desejos, os desesperançados, os que, cedo demais, se desfizeram da ilusão do amor.
        Um texto que fosse como uma prece inaugural aos que duvidam; acalanto aos ouvidos cansados das juras vazias e aos doentes de sentidos que se consomem na miséria e glória das paixões, aos que se rendem ao desespero das ausências e se ferem nas arestas da incompletude e da saudade.
        Um texto que fosse ameno como aquele vento breve, da manhã, quando abrimos a porta e nos lançamos destemidos, ao dia; que saciasse como seio de uma mãe ao filho com fome; que fosse seguro e acolhedor como os braços do pai a um filho com medo.
        Queria escrever um texto compreensível em todas as línguas, inclusive aos brutos e aos que não se ouvem. Que guiasse os que se perderam na burocracia do cotidiano, que aquecesse os que, sozinhos, dormem com seus temores ao relento da solidão. Que abrandasse o coração dos que sofreram - que o amor é sempre esta armadilha- e os fizesse novamente ter uma leveza de neblina, a cada recomeço, como só tem quem nada de braçada, entregue ao seu primeiro encontro.
        Queria a sabedoria de um monge e a habilidade de uma rendeira para tecer um texto em que inventasse só palavras novas, a serem todas inauguradas amanhã, pelos olhos das amadas. Que removesse o encardido da alma que vai ficando em quem se mágoa, mesmo com as mínimas desatenções - arisco que é o amar- e a angústia e incerteza que imobiliza os lábios. Que fosse belo e com a suavidade do orvalho e fosse necessário como o pão, com fios de linho de afeto e amor, onde corressem as lágrimas que choram as mulheres que sonham e se doam.
        Eu queria escrever um texto que pudesse ser puxado como cobertor nas noites de frio e desamparo. E ele tivesse tua medida exata, mulher...

A Surpresa (Watteau, 1718)
 

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