domingo, 20 de fevereiro de 2022

 

* Doença ontológica *

 Poeta quando faz sopa

tempera com fantasia,

achando ser coisa pouca

acrescenta heresia.

Chegados ao mundo, enfrentamos dois abismos.

Não sabemos de onde viemos

nem sabemos para onde iremos.

 Para preencher tal vazio, contamos histórias.

Sejam quais forem.

Azar ou sorte.

Amor ou ódio.

Vida ou morte.

De tudo cogitamos e fradejamos.

 Ao contar histórias, trazemos para perto o buraco do passado; fugimos de nosso próprio eu, exorcizamos e espantamos o precipício futuro.

Nós nos iludimos o tempo todo. Transformamos a ficção em realidade e tratamos esta como se fictícia fosse.

 Quando escrevemos e, inspirados em personagens da vida real, pomo-las em cenário ilusório, estamos a esforçar-nos em conferir credibilidade à narrativa.

Quando lemos textos antigos não ouvimos a voz das personagens, mas imbuímos seus pensamentos traduzidos em palavras escritas; é como se estivéssemos, juntos, conversando. Quando escrevemos pelo prazer de fazê-lo ou para demarcar nossa efêmera viagem em folhas de papel da vida, além de nos comunicar com o presente, deixamos rastos.

 A troca de saberes é uma das maneiras disponíveis para não nos sentirmos estrangeiros em nosso próprio mundo. Quando mantemos correspondência com outras pessoas, contando histórias, buscamos entender se, de fato, não estamos sós em nossos sentimentos. O escambo de palavras escritas, ao contrário das verbalizadas, não demanda pronta resposta; permite-nos meditar tempo suficiente para produzir-se o contradito. Se quem nos lê, entretanto, silencia em paralelo fala. Afinal, no silêncio se ouvem inaudíveis vozes da natureza.

 Nos dias correntes quando, por força da pandemia, ruídos da humanidade reduzem-se de forma significativa, torna-se possível detectar pequenos e continuados tremores próprios do planeta Terra.

 Por outro lado, queiramos ou não, somos seletivos ao apreciar letras, símbolos, sons, aromas, gostos ou tatos captados por nossos sentidos, as humanas portas de entrada. Em função de tal seletividade, descartamos muitas informações em dois alternativos destinos: a lixeira ou o apagamento total; são distintos, na lixeira pode-se sempre recuperar algo, contradiga-me quem assim não pensa. Quantas e quantas vezes, nós a reviramos em busca daquele texto descartado, ao reavaliarmos nossos pontos de vista ou, ainda, quando queremos ser perdoados por nossas incompreensões.

 Assim, a arte de contar histórias – de marias-fumaça, carros de boi, vapores, amores ou sabores, vacilações, navegações, mares ou matas, estalos ou galos - de tudo enfim, real ou imaginário, é tentativa para nos entendermos, espichando a distância ao despenhadeiro do porvir. Contar histórias, com a ressalva de quanto nos perpassa é constante desafio de projetar o mundo em algumas linhas, transformar em palavras o azar ou a sorte, o amor ou o ódio, a vida ou a morte.

 Histórias equivalem à representação do eu na vida cotidiana. Para humaníssimas, elas requerem alguns truques de retórica, pequenas ironias e, até, certa heresia, sal da vida sem o qual o viver não tem graça; daí se extrai sumo nutriente e confortante, mesmo sabedores de que nossa doença ontológica crônica, o próprio existir, não tem remédio ou vacina nem nunca terá.



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