domingo, 27 de fevereiro de 2022

 

* Aratu, ainda *

Leon Tolstoi desvendou o sucesso da arte do escrever, ao aconselhar “pinta teu quintal e pintarás o universo”.

Falar de nós mesmos, nossos seres e estares, tudo quanto nos rodeia, com atento olhar a pormenores diminutos, mas significativos, detalhes mesmo quando adornados por nossos desejos insatisfeitos, conferem-nos a autoridade do testemunho e da experiência de vida. Mais sejam as palavras no intento de descrevê-la, elas sempre recebem interpretação condicionada à mente por detrás dos olhos de quem as lê.

Pintar o quintal, portanto, é arte pictórica multicolorida, multifacetada, labiríntica, com o escopo de conferir ao intelecto do leitor um bem estar a deslumbrar-lhe o espírito. Para atingir esse desiderato, o pintor deve ter habilidade em se valer das nuances e combinações possíveis entre as sete cores da palheta celestial, algo muito além dos cinquenta tons de cinza. Assim, há de se considerar cada texto um quadro, de características próprias, cujas tonalidades predominantes mais encantem o coração do escritor-pintor.

Prossigamos.

Como assegura a crença, pretensão e água benta cada qual delas se valha na razão de seu desejo. Na falta da segunda, vazias estão as cubas às entradas das igrejas, recorro à primeira.

Tudo isso, fruto de recente arremesso ao vento de palavras minhas.

Não! Não me refiro à tela pintada com alhos de meu passado gélido, sem os bugalhos escoimados do freezer da minha memória. Quais bugalhos? Inesperados desencontros, sofridas ausências, arrependimentos tardios, temores vãos, sonhos surreais, amores desfeitos.

Trato, tão somente, de algo prosaico; tão comum como pagar a mensalidade do plano de saúde. Comer e beber são eventos triviais em nossas vidas, e isso, agora, volta à cena.

Adoro a culinária, e se aos octogenários como eu fosse assegurada sobrevivência de uns vinte anos, faria o ENEM para cursar, em primeira opção, literatura; em segunda, gastronomia; em terceira, jardinagem; em quarta, magistério; em quinta – isto não é curso nem escolha -, ser marido de mulher adversa à presença de homem na cozinha, caso da minha.

Como Iemanjá nas águas reina, Dona Linda, minha mulher, não admite intromissões na culinária doméstica; ali sou simples vassalo, e ai de mim caso me disponha a palpitar. Para, então, satisfazer anseios represados, “de caju em caju”, destampo a panela dos segredos, dou chamas ao fogão do imaginário e, com caneta-pincel, proponho-me encontrar palavras no labirinto-léxico com cores inusitadas para atiçar papilas e dar água à boca. Isso aconteceu quando eu trouxe à tona prato saboroso – e incomum – da cozinha baiana, Aratu com Mamão Verde.

Retrocedamos para melhor se entender o acontecido.

Perto de minha casa, onde os anos me alvejaram os pelos, coisa de uma hora de carro, chega-se à parte mais recôndita da Baía de Todos os Santos; dela tenho falado em crônicas pretéritas. Itapema, beira-mar pertencente ao município de Santo Amaro da Purificação, terra de história e estórias, conheci nos anos 60 - Caetano, ainda “menino” como eu - graças à minha então secretária, santo-amarense de família aparentada com Dona Canô - dia destes -, quiçá, pinte tal quadro.

Considerar Itapema como praia a desavisado leitor é imaginar areias alvas como o arroz do dia-a-dia, água transparente e azulada, chão de areia compacta, espertas correntezas, surfistas namoradores de sonhadas ondas. Quem frequenta Itapema em nada disso nada, tirante a maré de março quando as águas da baía, desabridas, avolumam-se e se arremessam terra adentro, no tempo restante quem quiser um mar com água ao pescoço ficará cansado de tanto andar para atingir o intento.

O leito da baía é semelhante a um plano inclinado suavíssimo em direção ao mar aberto lá pelas bandas do Farol da Barra em Salvador. Na maré cheia, as águas chegam devagarinho, como alguém pé ante pé, para não nos despertar. São aquecidas a ponto de inoportuno nelas estar.

A beira-mar, em pontos muitos, é santuário da vida marinha. Falo do manguezal com lama e odor típicos, sua vegetação encarquilhada e, também, de garrafas pet, plásticos de todo tipo, sandálias, infinitas quinquilharias, atiradas ao mar por habitantes de Salvador vindo ancorar nos mangues da baía.

O manguezal de Itapema tem muito a ver com minha vida: incontáveis vezes estivemos, mulher e eu, pés afundando no enlameado leito, no aguardo da maré enchente para nos banhar. Lá, na maré vazante, as marisqueiras - vestidos arregaçados entrepernas - chafurdam-se na lama, pés e mãos, catando frutos do mar não só para vendê-los a litros como também para com eles alimentar suas famílias. Em suas casas, é onde nascem pratos mais que perfeitos, há tempos idos, por “comida de gente pobre”, tidos.

As marisqueiras costumam levar filhos menores para se esfalfarem no lodo-mar e, ao mesmo tempo, ludicamente, apalpar a lama em busca dos mariscos camuflados em meio à dita; ajudam, assim, suas mães na busca do pão de cada dia. Todas agem com presteza; a faina se alterna em distintas horas, posto corresponder ao mutante horário das marés: tempo pouco para catar muito. Chegadas a casa, aferventam o material e, a seguir, nova catação: a retirada manual das carcaças daqueles minúsculos moluscos. Em luas de pescaria fraca, os mesmos constituem a base alimentícia das famílias beira-mar.

Nas cozinhas de tal gente simples, pescaram-se muitas receitas. Depois engalanadas, o merecido status gastronômico foi a elas conferido, geralmente por restaurantes voltados ao turismo e exímios em oferecer pratos nativos. Os ingredientes destes acham-se disponíveis nos quintais das casas, também simples, dos pescadores e suas mulheres: pimenta, coco, mamão, limão, biri-biri e outros como dendê e farinha de copioba encontráveis no armazém ao lado.

Os pescadores de tais receitas praieiras - gente dada à segunda opção me submetesse ao ENEM – têm olhos para apreciar, olfato para apurar, paladar para degustar os sabores-segredos ocultos em um simplório prato de Aratu e Mamão Verde.

Agora, imagino o mar às horas da maré vazante e revejo, ao longe, as marisqueiras: no lamaçal do mangue, elas catam peças a serem transformadas em iguarias transbordantes de prazer. Decerto, prazer equivalente ao falar de coisas tais.


 

 

Nenhum comentário: