Meu pai, Eugênio Claro de Carvalho (1907-1968), tinha manias próprias, algumas até, penso eu, fizessem parte de seu DNA. Uma das ditas, as “bibliotecas” da casa na cidade de Pelotas, RS, onde vivíamos. Tal foi a denominação por ele integrada ao linguajar do dia-a-dia da família. Vali-me do plural, pois duas eram as tais “bibliotecas”.
Na prática, quando alguém da casa alteava a
voz indagando:
Onde
está fulano?
Outro morador, em mesmo tom, correspondia:
Está na
biblioteca nº 1!
Ou,
Está na
biblioteca nº 2!
Entre as utilidades da ampla sala de visitas à
entrada da residência, uma delas era o escritório do “velho”, onde em armário
envidraçado, portas corrediças, o aviso nada polido: “Sem exceção, não empresto
livros.”
Ai de mim se lá entrasse de pijamas.
Isso é local de trabalho, reclamava o pai, vá vestir-se de forma conveniente, completava.
Na prateleira inferior do citado móvel, à vista para quem quisesse ver – tocar, jamais – diversas armas, entre elas um Colt 45 e uma espingarda “papo amarelo”. À época comprava-se munição em qualquer casa especializada, sem maiores problemas.
Belo dia, chave esquecida na porta do armário, peguei dois ‘tresoitões’ encartuchados e fomo-nos, eu e outro desmiolado companheiro, a dar tiros em postes da rede telegráfica a 500 metros da casa. Maluquices da juventude, menos mal não haver tido consequências.
Ainda, na biblioteca nº 1, armas ao lado, voltemos aos livros, alguns dos quais com a devida permissão, eu podia manusear: a Enciclopédia Britânica, onde passeava como se fosse nos atuais celulares; diversos dicionários, eu adorava o de sinônimos e antônimos; a coleção, desde os anos 40, da revista Seleções, exemplares lidos de cabo a rabo; o Tesouro da Juventude, na prática, a televisão da minha adolescência; um ou outro romance açucarado; obras de Paulo Setúbal.
Havia,
ainda, significativa literatura maçônica e filosófica. Lembro de uma de tais
obras, intitulada “Mundo, Supra mundo, Submundo”. Furtivamente, esforcei-me em
lê-la e nada entendi. Tentativas em páginas a esmo redundaram infrutíferas.
Fechei o livro, devolvendo-o à estante; pensei ser coisa muita para minha
inteligência pouca. Provavelmente, hoje eu alcançaria o quanto ditava a
referida obra.
Chegamos à biblioteca nº 2, também tratada por “sala do trono”: espaço menor, embora amplo para os conceitos arquitetônicos atuais. Ali o velho refugiava-se na solidão de um isolamento social - como o ora vivido em tempos de Corona vírus - e punha-se a ler o jornal diário incensando o ambiente com seu “palheiro” fumegante.
Bem
recordo, além de uma pia e do “trono” propriamente dito, pequena estante
abrigava jornais recentes e edições de revistas várias.
Um deles, ampla sala, minha biblioteca nº 1, local do troca-troca de vestuário, quando me transformo de idoso aposentado em peão de chácara. Nela mantenho meus livros, posto não haver espaço para tanto na residência da família.
Outrossim, sendo meu relógio biológico de satisfatória precisão, ao aqui chegar sou aturdido pelo ímpeto de acorrer à biblioteca nº 2, momento no qual, para saciar o hábito da leitura, acorro a uma das – sempre à mão - sínteses biográficas de autores famosos.
Não é que hoje, ao acaso peguei a de Machado de Assis?
Com devotado gosto e sem pressa alguma, na certeza não haveria alma alguma para interromper a paz reinante, curti o reencontro com a vida de MA.
Assim,
aproveitei a companhia de meus gatos bisbilhoteiros e das gélidas louras
maltadas propiciadoras de alcoólica valentia, para retratar cenas do passado,
deixando para vezes futuras, sabe-se lá quando - com o “cuidado de quem cata
cacos de vidro” - tentar reproduzir outros ecos cinzentos dos anos primaveris
deste gaúcho, feliz por viver na Bahia.
Há
quantos anos? A conta é fácil: 2021-1965 = 56.
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