domingo, 26 de fevereiro de 2023


 *Vida, simplesmente*

          Levamos a vida na pretensão de entender os outros quando, penso, melhor seria conhecer as causas da ignorância acerca de nós mesmos. O “decifra-me ou te devoro” do antológico mito grego, alusivo à necessidade do autoconhecimento, bem poderia ser adaptado para “decifra-te ou te devoro”. Afinal, a descoberta de qual animal tem quatro patas pela manhã, duas pela tarde e três à noite, leva o homem ao próprio homem, nas fases de sua existência, enquanto criança, adulto e idoso. 

Se não conseguimos entender por qual razão somos o que somos; se consumimos fosfato em busca de inalcançáveis respostas; se não fizermos o dever mais simples, fatalmente, vamos desembocar em frustrante beco sem saída. 

Um dos meios para nos reconhecermos - cogito com meus botões - é saber do gênero de vida dos antepassados. Não é, pois, por outra razão, eu, volta e meia, ressuscitar mortos em minhas narrativas. Isso é lógico, quando miro tempos de peripécias relatadas por bocas próximas a meus ouvidos. Ouvidos sempre atentos, pois, quando minhas avó e mãe conversavam entre si, na “língua do P” para despistar-me, eu, há muito houvera decifrado o enigma. Em paralelo, arquivava na mente, involuntariamente, lances da vida da época, ora emergentes dando luz a meu lazer predileto: escrever. 

Assim, a tanto me propor, acorri à primeira caneta à vista, entre as tantas espalhadas a meu redor, certo da eleita ao acaso, solícita como de praxe, se convertesse em treinados patins para meus volteios na gélida pista das letras, onde costumo congelar imagens de meus pensamentos; figura idealizada quando manuscrevo. Ledo engano. Faltou-lhe calor para liquefazer a seiva, tornando por consequência, invisíveis seus esperados rastos azuis na branca folha. Assim, interrompida a sequência mental das cenas, recorri a meu harém de musas da escrita, outra acudiu-me e deixou-me a vontade para patinar livre, leve e solto, e bem dizer, leia-se bem dizer e não bendizer. Isso, pois quem bem diz nada tem a ver com quem bendiz. Bendito seja quem bem diz. Mesmo quando, suas acrobacias, embaracem a mente de quem o escuta ou lê. 

Se, porventura, alguém enquadrar-se numa das hipóteses acima e não saiba nem tenha ouvido falar da “língua do P”, por favor, sendo jovem abaixo de cem anos, sinta-se à vontade para me consultar. Em cinco minutos, ensinar-lhe-ei como a genpemtepe compom apapepenaspas cinpimcopô mipinuputospos enpemsipinapa apa fapalarpar apa limpimguapa dopô pêpê. 

Mas não percamos o precioso tempo nem o ritmo inicial dessas mal traçadas, quando disse da necessidade em entender a vida de nossos antepassados. Não só a dos recentes. Devemos retroceder incontáveis eras, indo ao encontro dos primitivos ancestrais. Vidas calcadas na absoluta prioridade do ser humano, a sobrevivência. A eterna luta contra fatores adversos os quais, ao início, lá no comecinho dos tempos, milhões de anos passados, eram a alimentação, a proteção contra as intempéries, o confronto tanto com animais selvagens quanto com outros seres humanos. 

Haverá, por acaso, mudado alguma coisa desde então? 

Se relermos o supradito, em seu âmago, constataremos seguir inalterada a tragicomédia do viver humano. Claro, “animais selvagens” ora têm outras conotações, pois “civilizaram-se” e habitam na “segurança” das cidades onde vivemos. 

Entender tais situações é importante para sermos seres ajustados e felizes. Explorar o mundo interior, dar voz a nossos frêmitos, seja na fala, seja na escrita, motivados pela força das doenças, da dor, da morte, das pandemias e de outras vagas aspirações, leva-nos a melhor nos conhecer. Em tal despertar, na busca de nos decifrarmos, nossa inteligência aprende a se comprazer com as coisas simples. É na contemplação da simplicidade onde nos sentimos, realmente, realizados. Que o digam, os poetas. 

Se deixarmos as sensações navegarem a bel prazer, chegaremos à pergunta sem resposta, a natural incompreensão do existir.  É na poesia, somente nela, onde há sentido na vida simplesmente sem sentido. Porque, amanhã ou depois, lenta ou lépida, cairá a cortina. Retornaremos ao pó de onde viemos.

 


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