Encontrar um propósito de vida no
emprego é um mantra contemporâneo. Maria de Fátima Superti Dalla
Colletta, de 57 anos, tinha encontrado o seu.
Formada em
Enfermagem em 2007, foi trabalhar num lar de idosos em Torrinha (SP),
sua cidade natal. Encantou-se de cara com o trabalho de cuidadora. Mas,
pouco a pouco, viu-se tragada por funções paralelas.
Com o salário
que recebia na época, cerca de R$ 1.000, equipou por conta própria a
sala de enfermagem. Montou prontuário para cada interno, acertou o
quadro de funcionários, fazia limpeza e comida quando alguma das
cozinheiras faltava.
"Não me sentia explorada, fazia aquilo por
amor. Os diretores estavam numa zona de conforto, pois eu resolvia tudo,
desde uma torneira espanada, um chuveiro queimado, envolvia amigos e
minha própria família no atendimento aos idosos."
Esse quadro se repete em outras profissões que, aos olhos da sociedade, envolvem cuidado, afeto e paixão pelo ofício.
"Em
cozinha, a gente lava coifa, chão, fogão. Cozinha nenhuma - a não ser
de hotel, talvez - tem funcionário de limpeza. Então a gente chega às 7h
e sai às 2h do dia seguinte, sem ganhar nada por isso, apenas a
experiência de ter trabalhado muito."
Formada em gastronomia e em
engenharia de alimentos, a confeiteira e consultora Joyce Galvão conta
que até hoje vê esse tipo de exploração. "Na Espanha, por exemplo, você
pode até trabalhar em um restaurante [premiado com estrelas] Michelin,
mas é tudo de graça. Eles te dão comida e moradia. Essa é a troca."
Para
Joyce, "em áreas criativas, em que a gente precisa ter visibilidade,
trabalhar de graça ou apenas para divulgar o próprio trabalho é
constante". Existe uma zona cinzenta na maioria dos trabalhos que fogem
ao padrão escritório/carteira assinada, em que tudo é visto como
investimento de longo prazo.
O amor cega
Não
se sabe direito como e quando a moda começou – o aforismo "faça o que
você ama e você nunca terá que trabalhar um dia sequer na vida", que já
foi atribuído a Confúcio, segue vivo no discurso de aceleradores de
carreira, empresários e milionários tecnocratas. "FOQVA" (sigla para
"faça o que você ama") e suas variações são fórmulas repetidas à
exaustão em livros de autoajuda, palestras motivacionais e entre coaches
de carreira.
Um de seus profetas foi Steve Jobs (1955-2011), o
CEO da Apple que, em 2005, falou nestes termos a um grupo de formandos
da Universidade Stanford: "Vocês precisam encontrar o que amam. Isso é
importante tanto para a vida profissional quanto para a vida amorosa.
(...) E a única forma de fazer um ótimo trabalho é amar o que você faz".
Contudo, a ênfase cultural em fazer o que se gosta, em carreiras
de "encanto", facilita a legitimação de práticas abusivas, injustas ou
degradantes no mercado de trabalho. Esta é a tese principal de um estudo
desenvolvido por pesquisadores da Universidade Duke, na Carolina do
Norte (EUA), em parceria com professores de psicologia social da
Universidade Estadual de Oklahoma (EUA).
Publicado em abril de 2019 no periódico científico Journal of Personality and Social Psychology, o artigo "Understanding contemporary forms of exploitation: attributions of passion serve to legitimize the poor treatment of workers"
(Entendendo formas contemporâneas de exploração: ênfase na paixão serve
para legitimar condições precárias de trabalho, em tradução livre)
reúne oito experimentos e uma meta-análise (técnica estatística que
combina o resultado de dois ou mais estudos).
Segundo seus
autores, de forma inédita, o artigo pretende mostrar que, como na vida
amorosa, estar encantado por algo - no caso, o trabalho - pode "cegar"
as pessoas e levá-las a executar tarefas que não foram contratadas para
fazer.
O fato de os próprios gestores considerarem legítima a
atribuição de tarefas extras, a partir da presunção de que os
funcionários gostam do que fazem, leva, em muitos casos, a piores
condições de trabalho.
Exploração legitimada
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A confeiteira e engenheira de alimentos Joyce Galvão (à esq.), ao lado do chef espanhol Ferran Adrià, em 2007, criador de um centro de investigação de culinária no qual ela atuou |
O
fenômeno descrito no estudo é chamado de "legitimação da exploração da
paixão". Embora a paixão pelo emprego seja positiva, ela concede licença
para práticas nocivas de gestão e exploração da mão de obra.
Para
os autores, a exploração é definida "a partir do momento em que a
gerência, que representa seus próprios objetivos e interesses, bem como
os objetivos dos proprietários, exige que alguns funcionários trabalhem
excessivamente ou se envolvam em tarefas degradantes sem pagamento
adicional ou recompensas tangíveis".
Fazer hora extra não remunerada, ficar longe da
família, trabalhar aos finais de semana sem compensação e até mesmo
ouvir insultos e cobranças excessivas são vistos como comportamentos
justificáveis entre pessoas que se relacionam de forma apaixonada com o
trabalho - ou que a sociedade considera como "trabalho apaixonado".
Injustiças
ocorrem quando os trabalhadores não se beneficiam o suficiente dessa
entrega excessiva. O benefício, nesse caso, é tido como algo a ser
colhido no longo prazo. É como se o funcionário dedicado contasse com
uma análise positiva futura, por parte dos empregadores, que destacaria
sua dedicação para justificar um aumento de salário ou promoção, além de
garantir direitos e segurança laboral.
O "pagamento intangível"
desse esforço movido pela paixão é uma promessa que nem sempre se cumpre
- o que bagunça a noção de justiça ou mérito entre os funcionários.
Segundo
o estudo, essa exploração ocorre a partir de dois mecanismos
mediadores. O primeiro deles é o que supõe que trabalhadores apaixonados
pelo trabalho teriam se voluntariado para determinada tarefa, se
tivessem tido a chance. O segundo se dá a partir da crença de que, para
esses funcionários, o próprio trabalho é sua recompensa.
Muito amor envolvido?
Nem sempre os trabalhadores estão conscientes disso.
Como a atividade que executam envolve afeto, o sujeito não consegue
enxergá-la como exploração.
"Este movimento sociocultural
contemporâneo, que entende o trabalho não como um ofício, mas como uma
atividade apaixonada da qual as pessoas obtêm gozo e sentido, pode
ironicamente levar as pessoas a enxergar práticas gerenciais
questionáveis como justas e legítimas", afirmam os autores do estudo.
Pessoas
entusiasmadas com o trabalho são mais pró-ativas, mas também podem
sofrer mais de esgotamento (burnout), além de apresentar menor
flexibilidade em relação aos seus propósitos dentro daquela função.
"Um
bom número de sociólogos e jornalistas têm percebido o aumento de
maus-tratos entre empregados apaixonados pelo trabalho, funcionários
esses que admitem, eles próprios, que a paixão justifica o abuso. Na
Coreia do Sul, jovens trabalhadores desiludidos cunharam o termo
'salário de apaixonado', ou 'pagamento de apaixonado', para se referir,
de forma jocosa, à expectativa de que deveriam trabalhar sem ganhos
substantivos porque seu entusiasmo é a própria recompensa."
A
pesquisa ainda aponta para a legitimação da exploração por um caminho
inverso - quando os observadores atribuem "paixão" e "dedicação" ao
trabalhador que está na realidade sendo explorado.
Como nem sempre
o sucesso acompanha os esforçados, estereótipos sociais como "pobre,
mas feliz", ou "rico, mas infeliz" reforçam o status quo - para muitos,
especialmente em uma sociedade individualista como a americana, o
sistema social é justo quando a desvantagem material (pobreza) é
neutralizada pelo aparente bem-estar. Os autores chamam esse mecanismo
de "justificação compensatória".
Como a pesquisa foi feita
Os
oito experimentos iniciais entrevistaram 2.400 pessoas, entre elas
estudantes, donas de casa e administradores de empresas, sobre como
determinadas profissões e profissionais são percebidos, a partir de
situações hipotéticas. A meta-análise cruzou os dados obtidos nos
experimentos.
No Estudo 1, por exemplo, os participantes tinham
de identificar, entre 80 profissões, quais envolviam mais "paixão".
Áreas criativas e de trabalho social - artistas, ecólogos, assistentes
sociais, psicólogos, atores, veterinários - foram apontadas como as que
atraem mais gente apaixonada pelo ofício.
Em seguida, tinham de
responder quão bem ganhava, na média, um profissional dentro de cada
categoria, e quais funções, entre as 80, tinham maior status.
A
hipótese dos pesquisadores, de que condições de exploração são vistas
como mais legítimas em profissões associadas à dedicação apaixonada (ou
ao amor pela profissão), foi confirmada em todos os cenários descritos.
Como
previsto, essa relação era mediada pela expectativa de que esses
funcionários aceitariam trabalhar de forma voluntária, se pudessem.
"Nossa pesquisa sugere que podemos participar de
forma involuntária da legitimação de uma forma de exploração trabalhista
sutil e insidiosa. Certamente, não estamos dizendo com isso que as
pessoas devam desistir de buscar o que gostam no trabalho (ou na vida).
Há inúmeros trabalhos que deixam claro que a paixão é muitas vezes um
benefício. Nosso objetivo é inspirar maior atenção social e científica
às formas de exploração que podem passar despercebidas na sociedade
contemporânea."
Um possível caminho é identificar, entre funções,
cargos e profissões que envolvem entusiasmo e paixão, quais
empregadores tendem a explorar os funcionários.
"É imoral um
trabalho que te explora sem qualquer desculpa pra isso, é imoral e
errado. Mas vale um conselho: entrar nessa ciente do que pode acontecer é
agir sem inteligência. Se você conhece alguém que tem se dado bem no
emprego, que ama o que faz e não se sente explorado, é provável que essa
pessoa tenha sido muito meticulosa nas escolhas que fez", contou à BBC
Brasil Troy H. Campbell, professor assistente na Faculdade de
Administração Lundquist da Universidade do Oregon e um dos autores do
artigo.
Campbell reconhece que nem sempre é fácil trocar um
emprego tóxico por outro melhor. Mas, uma hora ou outra, isso vai
acontecer: pessoas talentosas e esforçadas caem fora de um ambiente que
legitima a exploração da paixão assim que podem.
Questão de classe e de desemprego
Em
2014, Miya Tokumitsu, autora de "Do what you love: and other lies about
success and happiness" (Faça o que ama: e outras mentiras sobre sucesso
e felicidade, em tradução livre), publicou um artigo na revista Slate
que viralizou nas redes sociais.
"Em nome do amor" destrói a
falácia sobre trabalho e vocação. "O problema do 'faça o que você ama' é
que ele não leva à salvação, mas à desvalorização do trabalho real.
(...) E, mais importante, à desumanização da grande maioria dos
trabalhadores", afirmou.
Em um mundo que exclui e segrega, de
crescente precarização dos direitos trabalhistas e a uberização de tudo,
o "faça-o-que-você-ama" nos mantém focados em nós mesmos, nos distrai
das condições de trabalho dos outros, enquanto valida nossas próprias
escolhas e nos descompromete de obrigações para com todos que trabalham,
independentemente se amam ou não suas profissões. "É o aperto de mão
secreto entre os privilegiados, e uma visão de mundo que dissimula seu
elitismo como nobre auto-aperfeiçoamento."
"A visão de Jobs, bem
século 21, pede que nos voltemos para dentro. Ela nos absolve de
qualquer responsabilidade ou reconhecimento pelo mundo à nossa volta",
afirma a escritora.
Para Suzana da Rosa Tolfo, professora do
Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e especialista em relações de trabalho, a ideologia de que
trabalhar duro e manter a persistência levarão à riqueza, à felicidade e
à satisfação no trabalho são parte da psicologia positiva. Mas poder
escolher trabalho, emprego e profissão, ou seja, poder ter uma
identidade profissional, encontram uma realidade diferente no caso
brasileiro.
"No país, as possibilidades de escolhas de carreira
são bastante afetadas pelas contingências do mercado de trabalho
restrito, das limitações para se estudar e se desenvolver competências.
Em grande parte, os trabalhadores que realizam atividades cuja
qualificação é pouca exigida se acostumam às limitações, que autores
podem chamar de exploração, como Alan Wertheimer."
Nesse sentido,
a lógica por parte desses trabalhadores é que não faz sentido trabalhar
com todo o afinco se, muitas vezes, os gestores das organizações
escolhem formas de pagar o mínimo possível a seus empregados e remover
os benefícios conquistados.
Ela cita pesquisas do núcleo de
estudos de que faz parte, que estuda processos psicossociais e de saúde
nas organizações e no trabalho. Os trabalhos indicam que, mesmo que o
emprego seja fonte de identidade, formador de vínculos e considerado
relevante socialmente, as pessoas podem desenvolver quadros de
adoecimento. Muitas vezes, o presenteísmo e a resiliência serão as
principais estratégias de defesa e de enfrentamento para manter-se
trabalhando.
"Miya Tokumitsu ironizava quando dizia que, afinal
de contas, se você realmente ama o que faz, preocupações sobre salário,
assistência médica e previdência social podem ficar em segundo plano",
analisa Tolfo.
Tal qual a experiência de Joyce Galvão na Espanha,
atividades que levam ao desenvolvimento de competências precisam ser
aceitas sob qualquer forma, como estágios não remunerados abundantes e
trabalhos freelance, para citar alguns dos referidos por Tokumitsu.
"Em
países periféricos como o Brasil, no qual há precarização do trabalho,
as condições de saúde e de segurança e os riscos psicossociais no
trabalho desafiam o trabalhador a manter a saúde mental e o amor ao
trabalho de forma saudável", diz Tolfo. (BBC News Brasil)
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