quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Faça o dia bem feito

 

        Acho a vida uma brevidade. Quando chegamos a um ponto em que temos apurado o senso estético, visual, cultural, gastronômico, etílico, começamos o inevitável declínio. Nesse breve intervalo entre a aquisição de uma razoável estabilidade econômica e comportamental e o início das limitações fisiológicas precisamos concentrar o máximo de esmero em viver.
        A partir de certo tempo de vida, devemos utilizá-la não como uma debênture de retorno infinito, como na juventude, mas como um investimento limitado e que por isso precisa ser escolhido, objetivo, qualificado, preciso. Viver é impreciso, ao contrário de navegar, mas temos que ir como quem navega, ainda que haja incertezas, como em toda arte.
        Esse é um tempo que não devemos fazer mais concessões ao que não nos representa- especialmente ao poder, qualquer poder- nem rebaixarmos o sarrafo que corta nossa aprovação, nem deixarmos passar em nosso escrutínio o falso, o efêmero, a injúria, a indiferença, o descaso, a servidão mental, ou emocional, ou nada daquilo que não seja absolutamente do bem. E digno.
        Os dias precisam ser vividos com cuidados de artesão, a ambição de grandiosidade humana dos poetas, a engenharia milagrosa das sondas atiradas na Via-Láctea, e a simplicidade de um fogo feito de gravetos.
        Acho que todos os dias deviam terminar como uma ave-maria, um som distante de alguém que toca um sax, um piano, ao pôr do sol, perto do rio, que caminha seu destino; uma página de um bom livro, lida; com a paz dos que dormem o sono dos justos; um passeio de bicicleta na estradinha de terra; a alegria de uma criança que brinca de amarelinha com seu vestido de flor; uma contemplação de alguém que rega um jardim, sem função, exceto por ser um jardim, e uma resistência a ser algo útil.
        Um jardim nada mais deve ser do que uma recusa de não viver.
       Um dia jamais deveria terminar sem que telefonássemos para outro amigo, como se fosse um registro no cartório divino atestando nossa humanidade. Afinal, galos sozinhos não tecem a manhã.
       Assim deviam terminar todos os dias. Com uma lembrança boa de alguém que foi, ou é, importante. Não que não haja máculas – a vida não se concede sem elas-, mas é que nesse tempo, não há tempo para elas, por uma questão de sanidade e redução de danos.
      Os dias deveriam terminar com o dobrar dos sinos, sem precisarmos perguntar por quem eles dobram. É preciso, todos os dias, ao terminar o dia, exclamar: eu fiz o dia bem feito.

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