sábado, 8 de abril de 2023

 


* Desabafo *

          Minha terra tem aspectos interessantes.

Embora seja a cidade brasileira com o maior índice de charutos per capita (alguém, por acaso, teria antes se ocupado com tal índice?), revela traços atados a costumes de séculos idos e a ausências que a fazem um pedaço de paraíso perdido, em plagas de um ‘quase sertão’.

 Aqui, por exemplo, não temos mar nem elevadores. São as ausências das quais falo. No Éden, ao Oriente, nas terras do celestial jardim, citado em Gênesis, também não havia mar. Elevadores, nem pensar. Pontos, pois, a favor da minha cidade. 

Em compensação - a tal compensação existe para nos atormentar - cortejos fúnebres ainda circulam pelas ruas centrais, urnas funerárias levadas à mão por amigos da família do morto, fazendo questão de marcar sua derradeira presença na nave da Igreja Matriz. Aqui, caríssimos leitores, ainda se velam mortos nas residências particulares. 

Costumes de antanho como, não faz muito tempo, ainda ao início deste século, boiadas espantadas eram tangidas pelas ruas, em direção ao antigo matadouro municipal. O corre-corre de tais oportunidades obrigava comerciantes a fecharem as portas de seus estabelecimentos, ante o temor de inesperadas invasões. Que aconteceram incontáveis vezes e passaram a fazer parte do folclore citadino. Agora, em sinal de respeito, eles ainda semicerram as portas quando da passagem dos que se mudaram para o andar de cima.  

Não se espantem, por favor. Mas aqui, na minha querida cidade, em vários pontos do núcleo urbano, casas há que ainda jogam à rua, as águas servidas de pias e de banheiros. Sabe-se, pelas bordas das calçadas – aqui ditas passeios –, quando alguém se banha ou está na cozinha a lavar pratos. 

O sol deste, como disse, ‘quase sertão’, em tempos de chuvas ausentes, dá sua parcela de colaboração, ao evaporar aquelas águas servidas: gera desagradável odor-lembrete a sucessivos e desatentos governantes, desprovidos de olfato, pois nada fazem para resolver o problema. 

Volto agora às tais compensações. Talvez, o agradável aroma dos charutos desta terra seja o contraponto às indesejáveis inalações antes citadas. 

Que assim seja. Não me digam que falo mal de minha cidade. Não.

Como inquieto participante do processo social, teço uma autocrítica, à espera de governantes, com piedade de seus conterrâneos, convertam em páginas do passado, tanto os domésticos velórios, quanto as águas servidas. 

A tanto, acrescento meus votos para a sanha tributária e os fundamentalistas de plantão deixarem em paz nossos bons charutos, restos do paraíso existentes na minha terra. 

                       Hugo A. de Bittencourt Carvalho, economista, cronista, ex-diretor das fábricas de charutos

Menendez & Amerino, Suerdieck e Pimentel,

vive em São Gonçalo dos Campos – BA.

[email protected]

http://livrodoscharutos.blogspot.com

 

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