*Outono diferente*
Outono, amigo meu, tens teus dias com tons de tristeza tingidos!
Sei nos preparares para tempos mais frios,
dias mais curtos, noites mais longas. Mas, no acordo contigo feito, há oitenta
anos, quando aportei à terra, nada se cogitara quanto a vidas mais curtas,
tempos mais tristes, longas esperas.
Outono, amigo meu! Estamos às luzes do século 21. Tu, privilegiado vivente da eternidade, tudo viste e viveste, sei que é verdade, nos ajude. Tenhas piedade!
Agora, em nossas bandas é teu tempo, Outono amigo.
Enquanto fenecidas folhas das árvores despencam e na mesma velocidade nossos mortos enterramos, conto contigo nos dias de teu anual reinado, para ajudar-nos vencer a peste que em nossa terra grassa e nos devasta. Que à chegada do general Inverno, valente combatente, tenhamos quantidade bastante, da arma para dar um basta à incansável sofreguidão da pandemia assassina. Falo da vacina.
Amigo Outono, estou atônito pelo sequestro de
minha paz, ante tantas mortes e incongruências; confio sejas capaz de fazer:
·
os
que creem a cura estar em mezinhas, acordarem;
·
os
que não creem no poder das vacinas, deixarem de vacilar;
·
os
que creem em milagres pastorais, se conscientizarem;
·
os
que não usam máscaras, passarem a usá-las;
·
os
que não evitam agrupamentos, caiam na real;
· os que se revoltam com suspensão do trabalho, compreenderem a gravidade do problema.
Enquanto sonho com coisas tais, encorajo-me retornar ao passado: lá longe, no século 14, para alcançar o que tu, amigo Outono, foste testemunha há quase setecentos anos, quando morrer de Peste Negra foi a regra.
Na ocasião – tu, outono, deves lembrar - Giovanni Boccaccio (1313-1375) emerge do anonimato, transfigura-se e ao testemunhar a tragédia em meio a pulgas e ratos, sem inseticidas, sem água tratada, sem energia elétrica, sem coleta de lixo, sem SUS, sem instalações sanitárias e quaisquer conveniências outras do mundo atual, houve por bem anotar as aflições, tristezas, mortes, decorrentes da peste.
Por serem os dias presentes envoltos em indesejáveis brumas, havendo apelado, a ti Outono, alertaste-me seria oportuno rememorar, mesmo de forma sintética, as palavras de Boccaccio descrevendo o fatídico, sombrio e surreal quadro florentino.
Ouçamo-lo, portanto:
ano 1348, século 14
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“Tínhamos atingido o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência’.
“ A peste, em Florença,
não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saia pelo
nariz era sinal evidente de morte inevitável. Em Florença, apareciam inchações
na virilha ou na axila. Algumas cresciam como maçãs; outras, como um ovo;
chamava-as o populacho de bubões”. (Daí adveio:
‘peste bubônica’)
“Em seguida o aspecto da doença começou a
alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos”. (Por isso tratada por ‘peste negra’.)
Tal inquietação entrara com tanto estardalhaço, no
peito dos homens e das mulheres, que um irmão deixava o outro; o tio deixava o
sobrinho; a irmã, a irmã; e, frequentemente, a esposa abandonava o marido. Pais
e mães sentiam-se enojados em visitar e prestar ajuda aos filhos”.
“Para dar sepultura à grande quantidade de corpos em
qualquer igreja, todos os dias, quase a toda hora, não era suficiente a terra
sagrada; e menos ainda seria suficiente se se desejasse dar a cada corpo um
lugar próprio. Às centenas, os cadáveres iam chegando, sendo empilhados como
mercadorias nos navios; cada caixão era coberto no fundo da sepultura com pouca
terra; sobre ele, outro era posto, o qual por sua vez era recoberto, até que
atingisse a boca da cova, ao rés do chão”.
“A crueza do céu foi de tal monta e quiçá também o
tenha sido, em parte, da crueldade dos homens, que, no período de março a
julho, mais de 100.000 pessoas, é certo, foram arrebatadas da vida, no circuito
dos muros da cidade de Florença”.
“A mim mesmo desgosta-me o ato de tanto me
revolver em miséria tanta”.
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Ao encerrar, copio Boccaccio.
A mim também desgosta o ato de revolver tanta miséria.
Não o fiz para consolo das amarguras presentes, e sim para melhor entender como tem sido complexo o (sobre) viver: até agora, neste outono de 2021, até aqui 300 mil mortos na minha Florença chamada Brasil.
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