Ato falho
Intelectuais, artistas, poetas, jornalistas, toda esta gama de profissionais que trabalham com a mente, tem uma séria tendência a ser distraída e, conseqüentemente, cometem atos falhos. Ato falho é aquela ação ou palavra que se realiza involuntariamente, porque estamos com o pensamento voltado para outra coisa mas o subconsciente está alerta pra outra.
Nestes casos, geralmente cometemos gafes e, como se sabe, gafe, uma vez cometida, é pior que palavra de Rei, não volta atrás de jeito nenhum. Mas, ainda assim, há pessoas de mente ágil e grande presença de espírito, que conseguem reverter as mais adversas situações.
Mas aquele sábado parecia não ser mesmo o dia do nosso
artista. Logo de manhã notou que alguma coisa não ia bem. A esposa andava com a
cara meio fechada, dizendo piadinhas, fazendo trejeitos, essas coisas que toda
mulher sabe dizer, sem dizer nada, quando algo não está lhe agradando. Por
volta das 10 horas, um colega foi até a sua casa e, sem perceber que a dona da
casa estava escutando, falou baixinho para o amigo. “Vamos lá rapaz, é uma
festa de dança”. Logo uma voz severa e reprovadora se fez ouvir lá de
dentro: “Vai pra onde”? “Nada não, bem, estou dizendo aqui que não presta
porque cansa”. “Ah! Bom.
Mas o nosso artista logo arranjou um jeito de escapulir.
Alegando que iria comprar jornais e cortar o cabelo, pegou o carro e foi até o
centro da cidade, onde o amigo já o aguardava. Era época de São João e, sabe-se
lá por que, uma música não lhe saia da cabeça. E o refrão ficava repetindo;
“...a primeira lapingochada é minha...”. Volta e meia ele se pegava
cantarolando esse trechinho da música, em voz alta.
Bebiam num barzinho (após ele ter cortado o cabelo e
comprado jornais, é claro) e duas jovens lhes faziam companhia. Conversa vai,
conversa vem, o amigo convenceu às jovens a irem com eles a uma festinha numa
chácara. Elas relutaram um pouco, mas aceitaram. O nosso artista, que retornava
do mictório, foi informado: “Vamos a uma festinha numa chácara”. Ele
distraidamente, disposto a tudo, e sem
ter exatamente o que responder, retrucou: “Tudo bem, a primeira lapingochada
é minha”. As jovens, sem muita certeza do que tinham ouvido, gritaram num
sobressalto: “O que”? Salvou-lhe o amigo: “Nada não, ele disse que a primeira lapada
de pinga é dele”. “Ah! Bom”.
Combinados assim, beberam,
dançaram, farrearam à vontade. Mais tarde foram a um motel. Consumado o ato, a
garota que estava com o nosso artista foi ao banheiro e, da cama, ele ouviu um
grito vindo do banheiro. Foi ver o que era. Ela havia levado um leve choque
elétrico na torneira do chuveiro. Nada demais, segue a festa.
Quando nosso artista voltou para casa, no final da tarde,
encontrou a mulher chorando. “Mas, o que foi que aconteceu”?
“Você não me ama mais. – dizia ela entre soluços – Hoje é
nosso aniversário de casamento e você nem se lembrou”. E por aí ia desfiando a
ladainha do antigamente não era assim, quando ele, espertamente,
declarou: “Ora sua boba, eu queria lhe fazer uma surpresa. Vá, se arrume, nós
vamos sair esta noite. Já tenho tudo preparado”.
Enquanto a mulher se arrumava ele foi ao telefone, ligou
para o gerente do hotel onde estivera à tarde, seu velho conhecido, e pediu que
lhe reservasse uma suíte, com champanhe, rosas e tudo mais para sua festa de
aniversário de casamento.
Saíram, foram a um barzinho, a uma boate, beberam dançaram e
reviveram os felizes dias de namoro. Mais tarde foram para o motel. Quis o
destino que o gerente tivesse lhe reservado a mesma suíte onde estivera à
tarde, com a outra. Beberam champanhe, brindaram o aniversário de casamento,
renovaram as juras de amor eterno e, por fim, fizeram amor quase que
como antigamente.
Findo o ato, ela foi ao banheiro. Antes de chegar a entrar,
ouviu a voz do zeloso marido: Cuidado, bem, que essa torneira do chuveiro dá
choque...”
NE: Publicada no livro A Levada da Égua e outras estórias (2004)
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